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Quanto tempo decorreu entre o velho de faces escavadas e olhos lacrimosos que te
escreve agora e o miúdo de oito anos, ligeiro como uma andorinha, que fui outrora?
Segundo o calendário, passaram cinquenta e sete anos. E, contudo, segundo o meu
coração alado, é o momento fugaz que me leva a fechar os olhos e pousar em Natzeret...
Estou empoleirado na esteira do meu quarto. É o décimo segundo dia do mês de
Tevet, muito depois da segunda ronda da noite, e, pela janela, vigilante, espreita
a Lua. Estamos no ano sessenta e sete desde a conquista do Sião pelos romanos, e
Augusto é o nosso imperador. Quando finalmente volto a adormecer, sonho que o senhor
é uma águia vermelha cor de sangue, com uma poupa roxa e olhos pretos de azeviche.
Pousada no canto do nosso telhado, contempla no horizonte a poalha do nascer do
sol com uma expressão severa e atenta, como se o mundo inteiro dependesse da Sua
vigilância. Quero tocar-Lhe, mas o medo do seu bico forte e aguçado tolhe-me os
movimentos. Mesmo assim, ouso dar um primeiro passo cauteloso e, quando vejo que
Ele, o Deus-Águia, não reage irado, aproximo-me um pouco mais. Quando chego ao lado
d’Ele, ajoelho-me e estendo a mão com a cautela de um miúdo que iá assistiu a várias
execuções, incluindo o apedrejamento da sua tia Zilpah. Transformo o meu gesto numa
espécie de murmúrio de saudação, prova da minha boa vontade e intenções
honradas. Com uma graciosa vénia, o Senhor inclina-se para mim, dando-me permissão.
Faço deslizar as pontas dos dedos ao longo da plumagem fresca, firme e sedosa do
Seu dorso. Tocar naquele corpo, tão compacto e poderoso, dá-me um arrepio. O Senhor
inclina a cabeça para o lado; os Seus olhos escuros encontram os meus e fazem-me
uma pergunta. Eliezer, digo-Lhe. Mas o meu pai chama-me Lazarus. Ele baixa as pálpebras,
mostrando que entendeu. Será que nesse momento Ele e eu passamos por uma porta invisível?
Agora, parece que residimos no nosso próprio tempo e espaço. Só uma década mais
tarde, hei de dar voz aos meus sentimentos e transpô-los em palavras, que serão
as seguintes: a nossa cumplicidade silenciosa criou uma ilha para ambos e, à volta
dessa ilha, encontra-se tudo o que já fui outrora, e tudo o que nunca mais serei.
E,
de repente, a cena muda... Estou de pé na muralha defensiva de pedra que circunda
Natzeret. O Senhor, empoleirado no meu ombro direito, segura-se com firmeza,
cravando-me na carne as Suas garras curvas e cor de ferrugem. Vão chegar
invasores do outro lado do rio Jordão e todos teremos de estar prontos para lutar.
É essa a mensagem que leio nos Seus olhos ansiosos e fixos na aurora cor de bronze
que se espraia sobre a Galileia. Perscruto a silhueta das colinas que rodeiam a
nossa vila, tentando descobrir os arqueiros e lanceiros de um exército estrangeiro,
e nesse momento vejo uma espiral de chamas desdobrar-se no horizonte. Em breve se
lhe seguem outras, e então entendo que me enganei, não é o Sol, ainda oculto, que
anuncia o seu regresso; é o inimigo que incendeia os nossos pomares. Soltando um
grito de guerra, o Senhor levanta voo e ergue-Se no céu com um restolho de asas
que se abrem. Uns momentos mais tarde, ao voar em flecha sobre as chamas, o
calor que delas emana transfigura-o, aumentando em dez vezes o seu tamanho e logo
a seguir de novo noutras dez. Mas, num ápice, ei-Lo que desaparece por detrás
de uma longínqua cordilheira de montes em chamas. A minha volta espraia-se um mar
de fogo e fumo. Volta, vem ter comigo!, grito em desespero. Não quero morrer
aqui! Atrás de mim, ouço uma voz de homem chamar-me pelo nome». In Richard
Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-854-7.
Cortesia de
PEditora/JDACT