sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O Bibliotecário. AM AM Dean, JDACT, LiteraturaDean. «O seu nome aparecia escrito no anverso com uma letra muito elegante. Não tinha selo nem remetente»

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«(…) O jovem não retorquiu. Pegou no livro e examinou-o com uma intensidade qie ia muito para além da frustração que Al sentia. Parecia…, zangado. Escuta, rapaz. Não sei o teu nome. Nunca te vi por aqui. Estás há muito tempo nas Cidades?, inquiriu Al. Os detectives das cidades gémeas de Minneapolis e Saint Paul, o núcleo das forças da lei e da ordem na zona meridional do estado, conheciam-se quase todos, nem que fosse apenas de vista. Não sou daqui. Foi tudo o que respondeu e não deu sinais de querer prosseguir com tais cortesias profissionais. Virou o livro e voltou a olhar para as folhas queimadas no cesto dos papéis. Al não estava ainda disposto a deixar o assunto morrer. Não és da polícia local? Então, és da estatal? O que faz aqui a polícia estatal?
Este é um caso para a polícia local. Maldita seja a polícia estatal. O homem mais jovem ignorou a persistência de Al e não respondeu às suas perguntas, acabando por colocar o livro sobre a mesa. Alisando o fato, virou-se para o detective com um ar de eficiência. Pela primeira vez, em toda a conversa, olhou directamente para os olhos de Al. Lamento. Já tenho o suficiente para elaborar o meu relatório. Foi um prazer conhecê-lo, detective. Um relatório? Aquele comentário displicente já passava  das marcas. Um livro e uns papéis queimados eram relevantes, claro, mas não suficientes para um relatório. Johnson olhou em redor da sala. Havia impressões digitais, manchas de sangue, marcas de sapatos. Tudo aquilo dava um relatório. E aquele janota parecia não lhe prestar a menor atenção. Mostrara unicamente interesse pelo livro e as folhas queimadas. Como se o resto da cena do crime não existisse. Não era um comportamento normal, nem mesmo para um polícia estatal. Voltou-se para o agente desconhecido com uma réplica sarcástica, contudo, não tardou a descobrir que o tipo se havia esfumado, deixando-o a falar sozinho.

Se atacaram e assassinaram um dos nossos colegas aqui, no campus, então quem é o próximo? Os colegas de Emilv tinham ido dar aulas e ela ficara sozinha no seu gabinete, cogitando sobre os estranhos contornos da conversa. As palavras de Emma Ericksen ecoavam na sua cabeça. As questões sem resposta associadas à morte de Arno Holmstrand não eram a única coisa que contribuía para o medo incómodo que sentia. Havia também a presença ominosa da própria morte. Um colega havia sido assassinado a poucos metros do seu gabinete. Existiria um perigo maior? Correriam todos perigo?
E eu? Emily descartou a ideia com a mesma velocidade com que esta chegara. Transformar aquilo numa situação pessoal era irracional e servia apenas para alimentar o medo. Teria de combater aquelas divagações dedicando-se a alguma outra actividade: trabalhando e encarregando-se das pequenas tarefas pendentes antes de abandonar o campus e ir ter com Michael.
Olhou para a pilha de correio que retirara da caixa. Naquele momento era a fonte de distracção mais imediata. Lixo, lixo, lixo. Emily ganhara a reputação de recolher tarde o seu correio, e aquela era a razão. Numa das mãos segurava a correspondência de quase duas semanas, e a maior parte do que recebera acabaria no lixo. Um envelope de uma editora a publicitar um livro que ela não pensava ler. Uma circular sobre os direitos dos animais, igual à que recebera na semana anterior e idêntica à que receberia na semana seguinte. Um memorando que alertava para a existência de um novo código de acesso para a fotocopiadora do departamento, escrito pela secretária com o mesmo secretismo e a solenidade que teria usado se estivesse a dar os códigos das armas nucleares. A vida de um académico podia ser intelectualmente cativante, mas não era nada excitante. Emilv atirou o memorando para o lixo, juntamente com o resto da publicidade. Por baixo de tudo encontrava-se um solitário sobrescrito amarelo de papel texturizado e claramente dispendioso. O seu nome aparecia escrito no anverso com uma letra muito elegante. Não tinha selo nem remetente.
Algo chamou a atenção de Emily. Notou a elegante caligrafia e a tinta castanha. As letras desenhadas com desenvoltura apresentavam os inconfundíveis traços típicos de quem usa uma caneta de tinta permanente. Virou o envelope e ficou a olhar para o reverso em branco. Não exibia carimbo nem remetente, pelo que devia ter sido colocado directamente na sua caixa de correio. Talvez se tratasse de um convite para uma festa ou um evento, embora, a julgar pelo aspecto do sobrescrito, tivesse de ser um acto de maior nível social do que aqueles a que estava habituada a frequentar». In AM Dean, O Bibliotecário, 2012, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-124-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT