Cortesia
de wikipedia e jdact
«O
homem era alto e tão fraco que parecia sempre de perfil. Sua pele era escura,
seus ossos proeminentes e seus olhos ardiam com fogo perpétuo. Calçava
sandálias de pastor e a túnica morada que lhe caía sobre o corpo recordava o
hábito desses missionários que, de quando em quando, visitavam os povos do
sertão baptizando multidões de meninos e casando aos casais amancebados. Era
impossível saber a sua idade, a sua procedência, a sua história, mas algo havia
na sua cara tranquila, em seus costumes frugais, em sua imperturbável seriedade
que, até antes de que desse conselhos, atraía às pessoas. Aparecia de
improviso, ao princípio sozinho, sempre a pé, coberto pelo pó do caminho, cada
certo número de semanas, de meses. Sua larga silhueta se recortava na luz
crepuscular ou nascente, enquanto cruzava a única rua do povoado, os grandes
limiares, com uma espécie de urgência. Avançava resolutamente entre cabras que
balançavam os sinos, entre cães e meninos que lhe abriam passagem e o olhavam
com curiosidade, sem responder às saudações das mulheres que já o conheciam e
lhe faziam vénias e se apressavam a lhe trazer jarras de leite de cabra e
pratos de farinha e feijão. Mas ele não comia nem bebia antes de chegar até à
igreja do povo e comprovar, uma vez mais, uma e cem vezes, que estava rota,
despintada, com as suas torres truncas e as suas paredes furadas e seus chãos
levantados e seus altares roídos pelos vermes. Entristecia-lhe a cara com uma
dor de retirante ao que a seca matou filhos e animais; privado de bens,
abandonou sua casa, os ossos de seus mortos, para fugir, fugir, sem saber
aonde. Às vezes chorava e no pranto o fogo negro de seus olhos recrudescia com
brilhos terríveis. Imediatamente ficava a rezar. Mas não como rezam outros
homens ou as mulheres: ele se estendia de bruços na terra, ou nas pedras, ou
nas louças lascadas, frente aonde estava ou tinha estado ou deveria estar o
altar, e ali orava, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta, uma, duas
horas, observado com respeito e admiração pelos vizinhos. Rezava o Credo, o Pai
Nosso e as Avé-marias sabidos, e também outras rezas que ninguém tinha escutado
antes mas que, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, as pessoas iriam
memorizando. Onde está o pároco?, ouviam-lhe perguntar, por que não há aqui um
pastor para o rebanho? Pois, que nas aldeias não houvesse um sacerdote, causava
pena tanto como a ruína das moradas do Senhor. Só depois de pedir perdão ao Bom
Jesus pelo estado em que tinham sua casa, aceitava comer e beber algo, apenas
uma demonstra do que os vizinhos se dedicavam em lhe oferecer até em anos de
escassez. Consentia em dormir sob o tecto, em alguma das moradias que os
sertanejos punham ao seu dispôr; mas, rara vez lhe viu repousar na rede, na
cama ou colchão de quem lhe oferecia estalagem. Tombava-se no chão, sem manta
alguma, e, apoiando em seu braço a cabeça de emaranhados cabelos cor azeviche,
dormia umas horas. Sempre tão poucas que era o último a deitar-se e quando os
vaqueiros e os pastores mais madrugadores saíam para o campo já o viam,
trabalhando em estancar os muros e os telhados da igreja.
Dava
os seus conselhos ao entardecer, quando os homens retornaram do campo e as
mulheres tinham acabado os afazeres domésticos e as criaturas estavam já
dormindo. Dava-os nesses descampados desmantelados e pedregosos que há em todos
os povos do sertão, no cruzeiro de suas ruas principais e que se puderam chamar
praças se tivessem bancos, pracinhas, jardins ou conservassem os que alguma vez
tiveram e foram destruindo as secas, as pragas, o descuido. Dava-os a essa hora
em que o céu do Norte do Brasil, antes de obscurecer-se e estelar se, flameja
entre abundantes nuvens brancas, cinzas ou azuladas e há como um vasto fogo de
artifício lá no alto, sobre a imensidão do mundo. Dava-os a essa hora em que se
prendem as fogueiras para espantar os insectos e preparar a comida, quando
diminui o bafo sufocante e se levanta uma brisa que põe as pessoas de melhor
ânimo para suportar a enfermidade, a fome e os padecimentos da vida. Falava de
coisas singelas e importantes, sem olhar a ninguém em especial da gente que o
rodeava, ou melhor, olhando, com seus olhos incandescentes, através do coro de
velhos, mulheres, homens e meninos, algo ou alguém que só ele podia ver. Coisas
que se entendiam porque eram obscuramente sabidas desde tempos imemoriais e que
alguém aprendia com o leite que mamava. Coisas actuais, tangíveis, quotidianas,
inevitáveis, como o fim do mundo e o Julgamento Final, que podiam ocorrer
talvez antes do que demorasse o povoado em repôr direita a capela abatida. O
que ocorreria quando o Bom Jesus contemplasse o desamparo em que tinham deixado
sua casa? O que diria do proceder desses pastores que, em vez de ajudar ao
pobre, esvaziavam-lhe os bolsos lhe cobrando pelos serviços da religião?
Podiam-se vender as palavras de Deus, não deviam dar-se de graça? Que desculpa
dariam ao padre aqueles pais que, pese ao voto de castidade, faziam sexo?
Podiam lhe inventar mentiras, acaso, a quem lia os pensamentos como lê o rasto
na terra do jaguar? Coisas práticas, quotidianas, familiares, como a morte, que
conduz à felicidade se se entrar nela com a alma limpa, como uma festa. Eram os
homens animais? Se não o eram, deviam cruzar essa porta engalanados com o seu
melhor traje, em sinal de reverência Àquele a quem foram encontrar. Falava-lhes
do céu e também do inferno, a morada do Cão, empedrada de brasas e serpentes e
de como o Demónio podia manifestar-se em inovações de semblante inofensivo». In Mario
Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo, 1981, Publicações dom Quixote, 2010,
ISBN 978-972-204-392-2.
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