Cortesia
de wikipedia e jdact
Para
entender a História
«(…)
Naturalmente, Sereníssimo, e fazendo um gesto entre cortês e humilde, como se
pedindo desculpas. Mas é facto que o povo sofre, Sereníssimo. Gentes morrem de fome pelo
Reino inteiro. E o que é que tu queres que eu faça, Castanheira?, retrucou o
rei, reassumindo o seu ar de Piedoso.
É a sina do povo. Sempre se morreu de fome no mundo, e sempre se morrerá. O
Brasil pode ser a solução, Alteza!, contrapôs com algum entusiasmo o conde. Se
colonizarmos verdadeiramente aquela vossa
conquista, poderemos dar um trato de terra para essa gente e
colher muito açúcar. O rei esboçou um pálido sorriso cúmplice. Adorava que lhe
chamassem as novas terras como sua
conquista. Encorajado, Castanheira prosseguiu. Defendeu que,
pagando vinte e cinco por cento de juros anuais, e com uma dívida equivalente a
mais de dois anos de receitas, o déficit do Tesouro era como uma bola de
neve que rolava serra abaixo: à medida que o tempo passava, só crescia. Urgia
encontrar novas fontes de receitas para o Reino. E os empréstimos compulsórios
que me induzistes a decretar?, espicaçou o rei, com um meio sorriso nos lábios.
Têm ajudado, Sereníssimo. Mas não resolvem o problema, aduziu Castanheira um
pouco constrangido, uma vez que ele próprio, como fidalgo, havia sido
dispensado da medida. Já o Brasil...
O
Brasil, ora, o Brasil!, interrompeu o rei, um tom acima do normal. Não mandámos
para lá Martim Afonso? Não gastámos trezentos mil cruzados com a expedição
dele? E de que adiantou? Dinheiro deitado à rua, isso sim! Concordo,
Sereníssimo. Mas isso foi há quinze anos! Agora, o facto é que os franceses
estão a mexer-se outra vez. E se Vossa Alteza não tomar medidas rigorosas,
corremos o risco de perder Santa Cruz, e colocando-se na ponta do estofado, de
modo a ficar mais próximo à mesa, o vedor da Fazenda argumentou que era preciso
povoar verdadeiramente aquela colónia, e não simplesmente mandar degredados
para lá. Que urgia levar a justiça D'el-rei para a província, para acabar com
os desentendimentos entre os capitães-donatários e os povoadores. O que é
preciso, se me permite a ousadia, Sereníssimo, é Vossa Alteza tornar-se senhor
de verdade daquela vossa conquista.
É a única maneira que vejo de manter os franceses longe do Brasil. O rei cruzou
as mãos por cima do ventre rechonchudo e ficou a girar os dedos polegares, ora
num sentido, ora no outro. Eh, o Diogo Gouveia, quando era reitor na
Universidade de Paris, insistiu muito nisso comigo, concordou João III,
desalentado. Mas o que se há de fazer! Volta e meia não estamos a combater os
corsários? Não mandei já não sei quantos protestos para Francisco de França, e
agora para o filho dele, esse menino aí... o Henrique? Não firmei já tratados?
Não me comprometi já a pagar dez mil cruzados ao capitão-mor da armada de
França, para que ele próprio combata os piratas da Bretanha e Normandia? Não comprei
até a carta de corso, que o salafrário do Francisco de França deu ao Jean Ango?
O vexame
acontecera no mesmo ano em que Martim Afonso fora mandado para iniciar a
colonização do Brasil. De modo a evitar confrontos com a França, o rei de
Portugal submetera-se a pagar quatro mil ducados, ou catorze quilos de ouro,
para que Jean Ango, visconde de Dieppe, parasse de roubar pau-de-tinta nas
Terras de Santa Cruz. Mas também... Jean Ango era mesmo poderoso! Dono de mais
de cem navios, o riquíssimo visconde francês ficara indignado com a morte,
pelos guarda-costas portugueses, de uma boa centena de homens seus no Brasil.
Em represália, ameaçara bloquear o porto de Lisboa e declarar, pessoalmente,
guerra a Portugal. Não dividi já aquelas terras, continuou o rei, do mesmo modo
que dividimos os Açores e a Madeira? Está bem. Concordo que as rusgas entre os
capitães e os colonos me estão a enfadar um pouco. Mas Portugal precisa é de
ouro, Castanheira! Ou de mercadorias que possa trocar por ouro. Terra, temos de
sobra. Tanto no Algarve, quanto em África e nas índias. É exactamente aí onde
eu queria chegar, Sereníssimo, ajuntou o conselheiro, com inflexão de voz
especialmente respeitosa. A terra do Algarve não é boa. As índias, como Vossa
Alteza sempre diz, têm-se mostrado um
sumidouro de gentes e de dinheiros. E em África os mouros não
nos dão sossego. Anos atrás Vossa Alteza não decidiu até abandonar as
praças-fortes de Arzila e Alcácer Ceguer, por ser muito caro mantê-las? Então...
É certo que as tais capitanias hereditárias não são exactamente um sucesso no
Brasil. Das quinze, só duas renderam alguma coisa. Mas Vossa Alteza sabe
porquê? Na opinião deste vosso humilde conselheiro, porque o Brasil não é os
Açores, e muito menos a Ilha da Madeira. É uma terra tão grande, que é quase
impossível guardar. E tão longe, que muitos dos donatários nem para lá foram, e
os que foram sentiram-se desamparados. Perdoe-me, Ataíde, mas isto não me
parece justo, reagiu António Carneiro, secretário-geral do Reino. Então alguns
capitães não levaram para Santa Cruz esquadras bem apetrechadas, colonos,
artífices de várias profissões?... Não, o problema não é esse, meu amigo. O problema
é que aquilo é uma terra selvagem. Os gentios brasis não comeram o Francisco Pereira Coutinho!» In
Aydano Roriz, O Fundador, Saída de Emergência, colecção a História de Portugal
em Romance, 2015, ISBN 978-989-637-740-3.
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