Cortesia
de wikipedia e jdact
Para
entender a História
«Não
estava a ser fácil, para os reis de Portugal, fazer valer a posse das terras
que haviam encontrado do outro lado do Atlântico em 1500. Com a abertura do
caminho marítimo para as Índias eram poucos os súbditos da Casa de Avis que se
dispunham a trocar o fascínio da riqueza fácil no Oriente, pelo desbravamento
dos trópicos selvagens. Mas, nem por isso, a Coroa deixou de mandar para a nova
província expedições regulares, que faziam cartas de navegação e portulanos,
onde iam desenhando o contorno da costa e baptizando os rios, baías e outros
acidentes geográficos. Mesmo assim, por quase meio século, o Brasil era tido
apenas como mais uma posse. Uma, no vasto colar de terras que a Coroa
portuguesa conquistara pelo mundo, em mais de setenta anos de insistentes
tentativas de descobrir um caminho marítimo para as especiarias das Índias. Em
todo o caso, não queriam perder a Terra de Santa Cruz. Até porque, embora ouro
e prata não tivessem sido encontrados, concluíram que podiam levar daquela
província valiosas peles de onça, aves palradoras de plumagem colorida e muita madeira
nobre. Sobretudo uma que, depois de triturada, misturada com água e fermentada,
resultava num corante avermelhado muito bem aceite nas tecelagens da Europa. Difícil
era manter em segredo a origem daqueles artigos exóticos. E da boca de um
marinheiro para outro, de um porto para outro, a notícia foi-se espalhando.
Espalhando, e atraindo para o Brasil navios corsários e os chamados entrelopos,
mercadores aventureiros, principalmente franceses, que não tinham escrúpulos em
fazer frente ao monopólio português assegurado pelo papa.
O
mês era o de Maio. O ano, o de 1548. Sentado à cabeceira da comprida mesa de
carvalho, com a sua cara de monge e a expressão beata que lhe valera a alcunha
de o Piedoso, o
rei de Portugal afagou a volumosa barba negra e perguntou com voz de
confessionário: e quanto a ti, Castanheira? António Ataíde, o conde de
Castanheira, despertou do torpor e empertigou-se na poltrona. A longa
explanação do marquês de Cadaval, contando das festividades que estava a
programar para a próxima temporada de Verão, quando a corte mudasse para
Sintra, haviam-no entediado. Por mais que, nos últimos vinte anos, volta e meia
se visse obrigado a ouvir tolices de toda a monta, ainda não se habituara.
Continuava a considerar um despropósito discutirem-se futilidades como aquela
num Conselho Real. Receio que as novidades não sejam boas, Sereníssimo, falou
em tom protocolar, atraindo as atenções para si. Recebi mensagem daquele nosso
jogral, infiltrado nos palácios da Citu de Paris. Segundo ele, os
franceses estariam a preparar uma nova investida contra o Brasil. Pelo sangue
de Cristo! Vão começar com isso outra vez?! Receio que sim, Sereníssimo. E
desta feita em larga escala, e apoiando com elegância as mãos entrelaçadas
sobre a mesa: ao que consta, tão logo consigam sufocar a rebelião na Aquitânia,
aquela por causa do imposto do sal, devem voltar as atenções para a vossa
província de Santa Cruz. João III, o terceiro João a sentar-se no trono
português, girou no dedo o anel de diamantes que lhe mandara de presente o rajá
de Narsinga, nas Índias.
Castanheira
parecia mesmo o arauto das más notícias, pensou. As más notícias era sempre ele
quem as trazia primeiro. E aquela falta de tacto, aquela inapetência para fazer
rodeios, aquele estilo directo do conselheiro às vezes aborreciam um pouco. De
todo o modo, tinha de reconhecer: António Ataíde era dos poucos que nunca lhe
escondiam nada. Por isso confiava nele. E tu acreditas nisso, Castanheira? Acredito,
Sereníssimo. Na verdade, penso que se Vossa Alteza não tomar uma atitude
decisiva, vamos acabar por perder aquelas terras para Henrique de França. Que
se perca!, retrucou o príncipe João Manuel, filho do rei, obrigado pelo pai a
participar em algumas reuniões do Conselho, ainda que não tivesse completado
onze anos. Aquilo nunca nos rendeu coisa alguma. Não é bem assim, Alteza,
argumentou Castanheira em tom professoral, procurando mostrar-se tolerante com
o jovem candidato a rei. Com o pau-de-tinta tem-se ganho uns cem mil cruzados
por ano. Da Nova Lusitânia tem vindo bastante açúcar. Um pouco de São Vicente
também. E o dízimo de tudo é sempre recolhido à Real Fazenda. Muito pouco, se
comparado com o que nos rendem as índias, contrapôs Francisco Portugal,
camareiro-mor do pequeno príncipe, indo em socorro do seu pupilo, o herdeiro
presumível do trono. Ataíde perscrutou o estado de espírito do rei e, como lhe
parecesse que o monarca estivesse a apoiar os seus pontos de vista, continuou:
o lucro com as índias não vai durar para sempre. Se Vossa Mercê se lembra, não
é de hoje que falo nas reuniões do Conselho estarem os proveitos a diminuir,
desde que os mercadores e financistas judeus começaram a fugir cá do Reino. Que
o meu irmão Henrique não te ouça dizer isso, Castanheira, interpôs o monarca João,
em tom de brincadeira. O principezinho emitiu um risinho tonto de menino fraquito,
tão satirizado às escondidas na corte e por detrás dos reposteiros. É verdade,
Sereníssimo, aquiesceu o conde de Castanheira, aderindo ao gracejo real. Um
dia, quem sabe, Sua Eminência, o cardeal Henrique, mude de ideia. De todo o
modo, até lá, Vossa Alteza sabe melhor do que ninguém: os judeus são tão
necessários a um país quanto os padeiros. Com gestos de cabeça, o Piedoso aprovava a
intervenção do conselheiro. E com a fuga de alguns dos melhores dos nossos
judeus, por receio do Santo Ofício (maldito) continuou Castanheira, reduziu-se
grandemente o comércio cá na Metrópole. Resultado: estamos a dever mais de dois
milhões de cruzados. Oitocentos mil, só de juros atrasados. Ora, Castanheira...
,replicou um pouco irritadiço o monarca, fincando os cotovelos na mesa, para
apoiar o queixo com os punhos. Não é preciso que me lembres isso a cada dia.
Como vedor da Fazenda, sabes muito bem que herdei um tesouro arruinado. Sabes
que tivemos secas tremendas. Que sofremos a pestilência e até um terramoto em
Lisboa!» In Aydano Roriz, O Fundador, Saída de Emergência, colecção a História
de Portugal em Romance, 2015, ISBN 978-989-637-740-3.
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