Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Se estes primeiros dados apontam para a presença judaica no arrabalde citadino,
pelos inícios do reinado de Pedro I (1357-1367) essa tendência de fixação
mostra-se ter invertido, em favor da centralidade imposta pela Praça, na
confluência da qual se situava a Rua da Triparia, que ligava aquele largo à não
menos central e animada Rua das Tendas (sobre o conceito de praça e o
seu papel como elemento urbano de maior significado na cidade medieval,
evolução toponímica e o traçado de algumas das artérias urbanas de Viseu, onde,
pouco antes de 1359, se regista a morada de um judeu chamado Jacob. De facto,
este dado leva-nos a suspeitar que, pelo começo da segunda metade de Trezentos,
o bairro dos judeus já tivesse abandonado o arrabalde deslocando-se para este
núcleo estratégico do centro urbano (em Coimbra, por exemplo, a tendência foi
inversa à de Viseu, com a mutação da judiaria do centro para o arrabalde
citadino, entre 1360-1380). Prova disso surge anos mais tarde, em 1379, ao
registarmos a primeira referência documental à sinagoga de Viseu, localizada
nas imediações da Praça e da Triparia, mais precisamente numa das quelhas que
partiam da rua das Tendas, por certo não muito afastada da Rua da Judiaria,
documentada também pela primeira vez, em 1386 (tal como em Viseu, as judiarias
de Guimarães, Barcelos, Vila Real, Tomar, Lagos e Miranda do Douro formavam-se
em torno de uma única rua). Estas duas importantes referências permitem-nos, assim,
inferir que este novo pólo de reunião e da vida da comuna judaica já se encontrava
perfeitamente definido e organizado nesta zona privilegiada da cidade, entre os
últimos anos do reinado de Fernando I (1367-1383) e o princípio da governação
de João I, 1385-1433). Em 1384 (6 de Setembro, Lisboa), o monarca João I doou
ao seu escudeiro Álvaro Gonçalves Taborda os rendimentos que a Coroa auferia do
serviço real pago pelos judeus de Viseu, o que mostra também a dimensão e a
actividade da comuna judaica viseense por esse tempo. O que, aliás, vem ao
encontro das determinações das cortes de Elvas realizadas por Pedro I em 1361,
que impuseram às comunidades semitas, entre um vasto conjunto de obrigações
segregacionistas, o dever de se organizarem em judiarias, constituindo assim
uma identidade espacial própria, definida em torno do seu centro ordenador
formado pela sinagoga. Se a isto ainda levarmos em conta que a construção deste
templo, símbolo da vida espiritual e religiosa da comunidade, pressupunha a
autorização do rei, fácil será concluir que a deslocação da comuna de Viseu
para esta área da cidade e a consequente formação de uma nova judiaria terá
sido um processo intencional, que mereceu o devido consentimento por parte da
Coroa.
Deste
modo ter-se-á concretizado mais um capítulo da história social e urbana de
Viseu medieval que decorreu num período muito particular, profundamente marcado
pela crise demográfica e cerealífera, agravado pelas sucessivas reincidências
do trágico surto da Peste Negra, a que se juntaram, durante o reinado
fernandino, três guerras com Castela, além da consequente crise dinástica
portuguesa, dirimida durante a Crise de 1383-85, e do prolongamento das
hostilidades com o reino vizinho até aos inícios do século XV. Foi sem dúvida
um período de forte instabilidade e conflito, que se reflectiu na destruição e
no despovoamento de Viseu, tragicamente atingida pelos saques e incêndios
perpetrados pelas forças castelhanas em 1372, em 1385 e em 1396. O
restabelecimento da paz, nos alvores de Quatrocentos, tornou possível que a
cidade se lançasse à ambiciosa tarefa do seu repovoamento e da sua
reconstrução, carenciada de gente e de investimento capaz de a reerguer e de
restabelecer o seu dinamismo económico e social. E aqui tudo leva a crer terem
os judeus desempenhado um papel decisivo, pois muitos terão sido aqueles que
vieram habitar a urbe viseense, provavelmente vindos de outras aldeias e vilas
beirãs ou da vizinha Castela, escapando assim ao movimento antijudaico que há
décadas grassava neste reino. Disso mesmo nos dão conta os registos documentais
quatrocentistas, que atestam um aumento exponencial do número de judeus em
Viseu, bem como o empenho do cabido da Sé em reactivar a gestão da sua base
patrimonial, através de uma firme política de emprazamentos de casas e
pardieiros, dispersos um pouco por toda a cidade, procurando, em grande medida,
reconstruir os seus imóveis e dinamizar a empobrecida economia capitular e urbana.
O bairro judaico de Viseu fazia parte dessa rede imobiliária, razão por que
encontramos, nestes primeiros anos do século XV, o cabido a emprazar a judeus
umas casas na rua que dava acesso à sinagoga (o judeu David de Pam Corvo e a sua mulher Reyna emprazam ao cabido uma
casa na rua que ia para a sinagoga; 1408 (19 de Junho, Viseu), ou a receber em doação
um pardieiro na Judiaria, cuja localização as fontes passam a situar, com mais pormenor,
nas imediações da rua das Tendas, a par da torre dos sinos da Sé (no espaço que
hoje corresponde à Rua da Senhora da Boa Morte)». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade
medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu,
Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra; Centro de História
da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN
1646-740X.
Cortesia da
RMedievalista/JDACT