jdact
As
Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…)
A missiva foi entregue. Onde?, perguntei, sem sequer erguer os olhos. A
rapariga hesitou, entrelaçando os dedos trémulos. Onde?, repeti. Num..., num...,
recanto da Mouraria, numa casa de..., humilde condição, gaguejou. O rapaz
estava com uma moça. O que dizes? Uma moça..., mesmo assim cumpriram-se as
ordens de Vossa Senhoria, senhora condessa. Não contava com tamanha afronta. Como
era ela? Diz-me! A minha criada empalideceu e baixou os olhos, em sinal de respeito.
Não fui eu quem a viu, senhora, foi o moço dos cavalos. Chama-o de imediato!
Ana
de Sá. Mouraria, 2 de Setembro de 1543
O
meu filho lá veio então para a capital, para casa dos condes de Linhares. Tudo
me parecia melhor do que deixá-lo em Coimbra. onde às custas do tio Bento
fingia assistir às lições. Contam-se muitas histórias sobre Luís Vaz: que se
fez um moço aventureiro, alegre e de conversação fácil, que mais depressa despedaça
corações do que escuta os mestres, que compôs um auto muito belo a que chamou Auto
dos Enfatriões, parece que inspirado no que o mestre Gil Vicente havia
feito para a Corte. Dizem que o auto revela um profundo conhecimento dos gregos.
Mas como, senhores, como? Tenho esperança de que agora, como preceptor de um fidalgo
de primeira linhagem, ganhe recato. Tantos anos de ausência..., que falta me
tem feito. Nunca me pus a caminho de Coimbra; só voltei a vê-lo quando chegou a
Lisboa e, tendo-se mudado para o palácio dos condes, em Xabregas, me veio
visitar... Corre que deixou num desconsolo a prima Isabel, a quem sempre foi muito
chegado, e uma rapariga de nome Leonor… Não sei. Sei tão-só que ao chegar de
Coimbra me abraçou com tamanhas ganas que quase me quebrou os ossos, mas logo
zarpou para o Mal-Cozinhado, sem sequer cuidar de arrumar o caderno onde
deixara escritas as rimas.
Descalça
vai pera a fonte
Leonor
pela verdura;
Vai fermosa
e não segura.
…
Descobre
a touca a garganta,
cabelos
de ouro o trançado,
fita
de cor de encarnado...
Tão
linda que o mundo espanta!
Chove
nela graça tanta
que
dá graça à fermosura,
vai
fermosa, e não segura.
Mal
pára em casa. Dorme o dia inteiro e sei eu lá por onde se desencaminha durante
a noite, porventura entregue aos mais sombrios prazeres mundanos ou, melhor
dizendo, carnais. que Deus me perdoe e o perdoe. Quando se põe além naquela
mesa a escrever as suas rimas, parece ausente de tudo... Dizem-me que tem queda
para poeta, pois a mim me parece que o mancebo tem queda é para as mulheres. Triste
sorte a minha. Luís Vaz importa-me mais do que tudo; eu importo-lhe menos do
que nada: mulheres, paixões, zaragatas, vinho, versos, em tudo põe maior
enlevo. Foi Deus que quis pôr os senhores condes de Linhares no seu caminho...,
pelo menos assim tem sustento. Dizem que a condessa é dama de mau génio e de
uma tal soberba que, perto dela, a rainha dona Catarina é mais mansa do que um
jumento. Mas que melhor futuro poderia eu desejar para Luís Vaz do que a entrada
na Corte pela porta grande?» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
Cortesia de OdoLivro/JDACT