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Eu habitava ainda então na casa paterna, onde tinha um vasto aposento
inteiramente independente, com saída para a rua. Maria Adelaide apeteceu vir
visitar-me, o que não fazia havia já bastante tempo. Dera-se ali a nossa
entrevista definitiva e sempre que lá voltava era infalível a sua exclamação,
embora a rir: foi aqui que eu me desgracei!... Encontrou tudo mudado: os móveis
noutra disposição e alguns que ainda não conhecia; uma aparatosa estante nova
de colunas torcidas; a poltrona regence brilhando sob uma réstia de sol
em todo o esplendor do seu brocado persa; e no meu quarto de cama a lindíssima
papeleira Luís XVI, muito vistosa nos seus enfeites de porcelana esmaltada e
bronze doirado. Olhava para tudo com um ar de gato que estuda o recinto onde
pela primeira vez o introduziram, mas disfarçando mal uma irrebatível expressão
de despeito. Instintivamente comparava o arranjo e qualidade das minhas coisas
com aquelas que tinha em casa e reputava formosíssimas: a cómoda de mogno
coberta de croché, a cama de ferro pintado, cadeiras de palhinha frouxa, e
sentia-se vexada com a evidente superioridade do meu mobiliário em que só agora
reparara miudamente. Começou a mostrar mau humor, buscando, no decorrer da
conversa, pequenas contradições que dessem azo a implicação e a queixas. Mas
como eu me esquivasse a contendas pouco a pouco se lhe foi dissipando a
irritação, pondo-se á vontade; já se sentava nas cadeiras de braços, procurando
as posições mais cómodas e ia, sem amargura, gabando os móveis, os estofos, as
madeiras.
Eu também
quero uma cadeira assim, ia para a minha casa e hei-de tê-la, não é verdade,
amigo?, quando tiver uma salinha melhor, porque realmente a minha é tão má... E
quando mandará o demónio da velha (a senhoria) arranjar a casa? E
inspeccionando as paredes: não é verdade, amigo, que aquele quadro está torto?
Pois vai-se já pôr direito. Eu não posso ver, lá em casa, os meus quadrinhos
tortos, nas paredes. A sua criada não arranja isto melhor agora. E dispunha os
trastes com um sentimento de harmonia surpreendente, colocando, ao mesmo tempo,
por cima das mesas e das estantes os bibelôs de forma a dar-lhes mais
valor, mais relevo. Quis dormir comigo, no meu quarto, e durante a noite
acordou-me para repetir: a gente também há-de ter um dia uma casa muito bem
arranjadinha; não é verdade, amigo?, mas com coisas minhas, só minhas.
E
quando se despediu, de manhã, foi novamente inspeccionar tudo,
percebendo-se-lhe no olhar certa pena de deixar aquele cenário luxuoso, cuja
beleza começava a apreciar, porém, boazinha, acrescentava: que eu nunca poderei
ter coisas tão ricas, nem quero. Quero que o meu amiguinho as tenha. Lá na
nossa casa coisinhas simples e asseadinhas. Dê cá um beijo; outro, outro... Até
logo. Vá bem cedo, sim? Adeus... Tudo isto era dito sem o mais leve tom de
pieguice, com uma naturalidade, uma espontaneidade, que me sensibilizou, e
lembrando-me dos seus continuados e justificados queixumes dos tratos que
sofria à mãe, e também do que havia de humilhante, vexatório, em sujeitar-me
àquela promiscuidade, resolvi separá-la da família de modo que fizesse vida à
parte, e logo nesse mesmo dia aluguei uma casa alta, em boa rua, com um grande
quintal, destinando o primeiro andar a Maria Adelaide e os baixos à família». In
Manuel Teixeira-Gomes, Maria Adelaide, 1938, Romances Portugueses, Obras Primas
do século XX, Coordenação de Davis Mourão-Ferreira, Círculo de Leitores,
Cortesia da Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia de
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