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O
corsário de Malabar
«(…)
No zambuco a luta terminara a favor dos corsários e todos se imobilizam para
assistir ao duelo daqueles dois homens tão diferentes, mas cujos corpos
desenham movimentos simultâneos e precisos, em que cada gesto encontra a resposta
no gesto adversário, como se fora mil vezes ensaiado. Lançam-se um contra o outro,
pelejando como demónios, entrando e tirando-se, cometendo e defendendo, arredando-se
apenas uns instantes para cobrar fôlego, ferindo-se de tantos golpes e tão amiúde
que o sangue, misturando-se, lhes ensopa as vestes. Nos olhos de ambos, porém, a
raiva cedera lugar à admiração.
Pêro
leva já no corpo o cansaço dos combates anteriores, ao lado de Schaban, os
braços carregados com a pesada espada de duas mãos começam a vacilar. Timoja sente
alívio, por se achar também com poucas forças e temer uma perda de prestígio diante
dos seus homens, por isso, num esforço inesperado salta e desfere um golpe na
cabeça do falso mercador, que, apesar da surpresa, logra desviá-lo no último instante,
mas não tão completamente que a ponta lhe não resgue a touca, abrindo-lhe uma larga
ferida. Pêro da Covilhã dobra os joelhos e cai desacordado.
Quando
recobra os sentidos, o escudeiro acha-se amarrado de pés e mãos, deitado no
mesmo sítio onde travara o duelo com Timoja. Nota com surpresa que lhe puseram
uma atadura à volta da cabeça para estancar o sangue e lhe cuidaram dos outros
ferimentos. Schaban está a seu 1ado, consciente e com os golpes pensados. O capitão
dos corsários, a poucos passos deles, dá ordens à sua chusma, que faz o conto das
baixas de ambos os partidos, transporta os feridos para um recanto mais abrigado
e 1ança os mortos ao mar. Os velhos, as mulheres e as crianças estão na coberta
e entre os trinta e três passageiros e tripulantes que restam, Pêro avista o velho
Mir Bubaka, que parece incólume.
Timoja
nomeia o lugar-tenente que vai substituir o morto e os homens saúdam o novo oficial
com aclamações e pancadas de lanças e zargunchos contra o tabuado do navio. Marakkar,
um homem magro, de pele castanha curtida como couro e cara cheia de cicatrizes de
velhas queimaduras, ergue a mão a pedir silêncio e ordena que lhe tragam um balde,
sendo prontamente obedecido. Eis a primeira presa, grita o pirata, lançando mão
ao jovem marinheiro que lhe está mais próximo e, atirando-o ao chão, com um só golpe
de sabre, decepa-lhe a cabeça.
Um
grito de horror solta-se das bocas dos prisioneiros ao mesmo tempo que o clamor
de vitória dos corsários. Auxiliado por um sequaz, o lugar-tenente de Timoja soergue
o corpo ainda em convulsões e recolhe no cubo de couro o sangue que jorra. Que o
teu sangue nos traga fortuna!, diz, como se orasse. E nos dê boa viagem!, brada
o coro dos piratas. O balde passa do zambuco para os paraus, cujas proas os homens
untam com o sangue da vítima, por entre vivas dos companheiros. Quando capturam
um navio, murmura Schaban, usam degolar o primeiro tripulante ou passageiro a que
deitam a mão e pintam a proa dos seus barcos com o sangue para terem sorte.
E
falavas tu que eles não matavam gente!, exclama Pêro em sanha. Diz-se que Timoja
não consente mortes quando as presas se rendem sem combate, mas comanda uma
chusma de corsários e, se não cumprir com as tradições, arrisca-se a um motim e
a ser morto pelos seus próprios homens. Como vês, mantém-se à parte dos
festejos. De facto, o capitão parece alheio ao comportamento da sua marinhagem,
mais interessado em observar os dois prisioneiros e as suas reacções. Pêro sustenta-lhe
o olhar, num desafio. Que quererá de nós? Por que motivo não estamos com os outros
prisioneiros? Combatemos bem. Talvez nos reserve uma sorte diferente. Marakkar não
está satisfeito. Segundo o inventário feito pelos seus homens, a sorte bafejara-os
com uma rica presa, contudo não tinham achado ouro ou pedraria. Decerto esconderam
as bolsas antes da abordagem, diz Timoja. Mercadores deste jaez não viajam de mãos
a abanar. Tratai de os revistar e fazei-os falar». Deana Barroqueiro, O
Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino
do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-258-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT