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O
corsário de Malabar
«(…)
Os corsários ocupam-se dos feridos, sem deixar de manter uma vigilância
apertada sobre a tripulação e os viajantes, separados em dois grupos. Pêro observa
como os passageiros guardam os mulheres no meio deles, para as proteger de
qualquer ultraje. O capitão e o seu lugar-tenente abeiram-se dos mercadores e
os homens que não estão de guarda acercam-se para participar na folia. Meus
senhores, pede Timoja com irónica cortesia, dai-nos as vossas bolsas e as
jóias, em paga do muito trabalho e dos mortos que houvemos na tomada do barco. O
pai de Schaban e a maioria dos homens entregam as bolsas e as jóias que trazem
postas. Quatro tratantes (aquele que faz negócios) caem de joelhos, numa ladainha
de juras e súplicas: não trago dinheiro, meu senhor! Só mercadorias para vender
em Goa. Sou Al-Qadi, um pobre mercador de panos, nada mais tenho além do que me
haveis confiscado, capitão! Juro por Allah! Fio-me mui pouco em juras de mouros
embusteiros, diz Timoja a rir e faz sinal aos seus homens. Dois corsários corpulentos
sobem com Al-Qadi para um rebordo alto de madeira e, por entre gargalhadas de
escárnio, suspendem-no pelos tornozelos, de cabeça para baixo, sacudindo-o como
um trapo. A cabaia vira-se do avesso, descaindo para o pescoço e deixa à mostra
as largas ceroulas de algodão e as meias atadas nos joelhos, ao mesmo tempo que
uma chuva de moedas cai de um cinto de pano e rola pela cobertura.
Com
que então não tinhas posses, cão mentiroso?!, achincalha Marakkar. Dêem-lhe
umas chicotadas para lhe avivar a memória. O senhor que se segue... Capitão!
Marakkar!, grita um grumete. Aquele ali engoliu umas pedras. Ora vede o
ratoneiro de jóias! Achas-te mais esperto que os outros?, zomba o
lugar-tenente, acercando-se do mercador, que, pálido de terror, se limita e
abanar a cabeça numa negativa muda às perguntas do pirata. Engoliste as pedras,
filho de moura barregã, para as cagares mais tarde? Não sabes que para grandes
males há sempre grandes remédios? Um riso velhaco arrepanha-lhe a cara queimada
como um esgar de desdém: Trazei-me um affabeh e um pouco de cal! O
grumete entrega-lhe de imediato o jarro de bico fino e um punhado de cal, como
se os tivesse preparado de antemão. Basta-me uma colher, pois não quero matar
este cão antes de me dar as pedras ou terei de lhe abrir a pança. Solta as
vestes e urina para dentro do cântaro usado para as abluções da boca e das
mãos, provocando o murmúrio indignado dos prisioneiros.
Piscando
um olho ao mercador que soluça, o corsário deita um pouco de cai no recipiente
e agita-o. Segurem o porco mouro e abram-lhe a boca. Os algozes lançam ao chão
o prisioneiro, a espernear e a guinchar, imobilizando-o. Marakkar enfia-lhe o
bico do affabeh na boca, forçando-o a engolir a beberragem até ao fim, deixando-o
enrodilhado no solo, a chorar de asco e humilhação. O veneno não tarda a fazer
efeito e o mercador, num acesso de soluços e tremuras convulsivas, começa a vomitar
como se fosse lançar os fígados pela boca. Até parece mouro encantado, a bolçar
rubis e pérolas da boca p'ra fora! Como é que comeste tanta pedra, capado
tinhoso, sem te esganares? Com insultos e pragas, os corsários recolhem do vomitado
uma meia dúzia de pedras e pérolas de preço, enquanto o homem agoniza com o estômago
desfeito, amaldiçoando-os. Botei cal em demasia e tirei-lhe o chiadouro, diz
Marakkar, revirando-o com o pé para se certificar de que morrera e afastando-se
em seguida. Agora os outros.
Já
todos entregaram a pedraria!, corta Timoja, de cenho franzido, mostrando-lhe as
bolsas das jóias que os três mercadores tinham feito aparecer de dentro das
vestes, como por magia. Já tens o que querias. Então, vejamos as mulheres, pois
as fêmeas mouras dão boas escravas e ainda melhores concubinas! Estalam uivos e
gritos e as mulheres choram nos braços dos parentes. São sete, quatro persas e
três árabes. Pêro já vira as primeiras junto dos pequenos pavilhões armados
sobre a cobertura de canas e, quanto às arábias, apenas avistara uma matrona
que não parava de rezingar a propósito de tudo e de nada com o marido, um
mercador de tecidos de algodão; as duas restantes nunca tinham posto um pé fora
do casulo de panos. Todas estão veladas, os rostos cobertos por um pedaço de tecido
fino com uma estreita fenda para os olhos ou com uma espécie de pequeno avental
de crinas de cavalo.
Marakkar
afasta os prisioneiros da sua frente e, seguido de dois guardas armados,
acerca-se das mulheres. Pêro e Schaban remexem-se inquietos, contorcendo os
corpos numa vã tentativa de soltar as cordas. As vossas jóias, ó flores do Islão,
entregai-nos as vossas jóias e nenhum mal vos sucederá. Estamos aqui para vos
proteger e..., servir! A última frase, dita com ironia, provoca risos e doestos
de grosseiro apreço. Pulseiras, colares, brincos e anéis passam para as mãos do
lugar-tenente de Timoja. É tudo, minhas belas? Lembrai-vos de que pagareis caro
pelo escondido... Ide buscar, sem detença, os vossos cofres de viagem! Os
parentes das cativas protestam, querendo acompanhá-las, mas são mantidos em
respeito pelas armas. Acompanhadas por um guarda, as mulheres entram nas tendas
que lhes servem de habitação, já vasculhadas pelos corsários, com a mais velha
a resmungar entre dentes contra os ladrões de honestos viajantes que mal ganham
para viver». Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos
Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa,
2010, ISBN 978-989-809-258-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT