terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Gastos pelo tempo e pelo uso, os livros emanavam um cheiro a mofo que tornava o ar irrespirável. Espreitando por entre as portas dos” armaria”»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) Ignazio limitou-se a esboçar um gesto compreensivo, sem transformar a conversa num interrogatório. Tinha a certeza de que as revelações não tardariam, bastando para tal uma conversa pacífica. O monge, talvez arrependido por ter falado de mais, baixou os olhos. Vinde, disse, como se quisesse acolhê-lo na sua própria casa. Permiti que vos mostre a biblioteca. A biblioteca do Castrum Abbatis estava pouco cuidada. A humidade alastrava por todo o lado, apesar de as janelas garantirem um discreto arejamento. Gastos pelo tempo e pelo uso, os livros emanavam um cheiro a mofo que tornava o ar irrespirável. Espreitando por entre as portas dos armaria, Ignazio reparou nas obras de Agostinho e de Isidoro de Sevilha, de Gregório Magno e de Ambrósio. A maior parte das obras respeitava às Sagradas Escrituras, mas também havia autores pagãos como Séneca e Aristóteles. O mercador ia folheando os livros, lia frases soltas e simultaneamente citava textos que naquela biblioteca não existiam, obras raras de temas bizarros que Gualimberto não conhecia. O bibliotecário ouvia-o com atenção, perguntando-se quem seria na realidade o indivíduo que tinha à sua frente. O acento da sua fala era indefinível: talvez castelhano, pensara, mas tingido de vagas inflexões mouriscas. Tendes muita preparação, admitiu a dada altura. Dizei-me, onde estudastes? No Studium de Toledo, respondeu o mercador, assoprando os dedos cheios de pó. Usufruí dos benefícios dos ensinamentos de Gherardo Cremona. O famoso Gherardo, que se recolheu em Espanha para estudar os textos ocultos dos mouros! Um grande magíster, exclamou o monge quase eufórico. Então deveis ter sido seguramente iniciado nos mistérios da alquimia e das ciências herméticas. Aos lábios de Ignazio aflorou um sorriso dissimulado. Por favor, padre, mudemos de assunto, peço-vos. É melhor evitarmos certos temas.
Gualimberto pareceu desiludido. Tendes razão. No entanto quero prevenir-vos: homens do vosso talento são frequentemente mal compreendidos e tornam-se presas fáceis em lugares como este. Não confieis em ninguém, no mosteiro. Sobretudo, não confieis em Rainerio Fidenza. É a segunda vez que o dizeis. Ignazio devolveu-lhe um olhar inquiridor. Tendes provas sobre a sua má-fé, ou apenas suspeições? Falai sem medo. – Suspeições? As mesmas que vós tereis, imagino. Os lábios carnudos de Gualimberto fecharam-se num sorrisinho maroto. Aposto que não acreditastes na história da morte de Maynulfo Silvacandida. O que pensais? Que se trata de uma patranha. Maynulfo não teria morrido com o gelo do Inverno. Rainerio mentiu-vos, como, de resto, o fez com toda a gente. São acusações graves. E dizei-me, o que terá acontecido ao velho? Ninguém viu o cadáver, excepto Rainerio. Os olhos do monge arregalaram-se, subitamente, febris. Diz-se que Maynulfo foi morto enquanto rezava no ermo..., e que o seu corpo terá sido escondido dos olhares dos confrades, uma vez que evidenciava sinais de ferimentos infringidos.
Tocado com esta conversa, Ignazio agarrou Gualimberto pelo braço e puxou-o para ele com um gesto enérgico. O monge estremeceu com a surpresa e opôs resistência, mas a força do interlocutor era muita e não conseguiu libertar-se. Depois ouviu a voz do mercador sussurrar-lhe ao ouvido, e então compreendeu que ele não o abordava numa atitude de ameaça mas de confidencialidade. E alguém sabe quem terá sido o responsável?, perguntou-lhe Ignazio. Não, apressou-se a responder o bibliotecário. O torno que o prendia apertou-o mais ainda, convidando-o a prosseguir. Mas..., antes da morte de Maynulfo, Rainerio acolheu na hospedaria uma figura estranha, um frade com um rosto desfigurado. Poucos o viram. Desapareceu depois da morte do velho abade, sem deixar rasto. Ignazio libertou a presa. O nome? Gualimberto recuou e baixou os olhos. Procurei entre as cartas de Rainerio… Sei que não o deveria ter feito, mas a curiosidade prevaleceu sobre a contenção». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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