domingo, 26 de março de 2017

A Rosa de Sebastopol. Katharine Mc Mahon. «O meu querido, querido menino. Nunca te esqueças da tua Mamã, do muito que ela te amou»

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«(…) Ele apontou para uma minúscula moldura de madeira lisa, talvez com dez centímetros por sete e meio, que enquadrava um retrato de Eppie aparentemente nos seus tempos áureos, antes da penúria. Anéis de cabelo brilhante enfeitavam-lhe o rosto miúdo e do colo nu emergia o pescoço alongado. Envergava um vestido com a cintura subida que se lhe colava ao peito, apesar do amplo decote em V que terminava nos ombros. Posava quase de perfil, de tal modo que olhava algures para a direita do artista e ostentava um sorriso tímido, como se preferisse não ser o alvo das atenções. As outras relíquias da tia Eppie eram um par de luvas brancas de pelica com botões de pérola, um pouco encardidas na ponta dos dedos. Cheirei-as porque sabia que o perfume permanecia nas luvas, e lembrei-me imediatamente do aroma a água de rosas e do odor a transpiração que sempre a tinham caracterizado. Havia um pequeno guarda-jóias com flores bordadas na parte de cima, forro de seda e um espelho no interior da tampa. O anel de noivado de Eppie com uma fiada de três pequenos diamantes, que eu conhecia tão bem dos tempos da costura, estava embrulhado num pedaço de tecido amarrotado, junto de uma folha de papel dobrada de modo a caber exactamente na caixa. Nela, Eppie escrevera com uma mão pouco firme: para o Harry. O meu querido, querido menino. Nunca te esqueças da tua Mamã, do muito que ela te amou. Era muito meiga, a tua mãe, disse eu em surdina. Deixou-me a sua caixa de costura. Sabias?
Henry não respondeu. Agarrei-me ao seu pescoço e tentei abraçá-lo, mas ele não reagiu; continuava esquivo como no dia em que chegara. Pouco depois, desisti e afastei-me, mas, ao chegar à porta, ouvi um som roufenho e terrível que lhe saía da garganta e, quase sem dar por isso, encontrei-me sentada na cama, com a cabeça dele enterrada no meu regaço. Os meus dedos acariciaram-lhe o cabelo e a saia do meu vestido de algodão ficou quente e húmida com as suas lágrimas. Os seus soluços vinham das profundezas do corpo, e ele agarrou-se ao meu braço e às minhas costas. Por fim, recompôs-se e fitou-me, com o rosto molhado. Agora, terás de ser tudo para mim, Mariella.
A tia de Derbyshire não conseguiu operar um milagre no pai de Henry (o infeliz e incapaz Richard Thewell), que foi a enterrar passados dois verões. Entretanto, Henry desapareceu no longo túnel que era a aprendizagem da medicina, absorvido por uma série interminável de palestras e exames de disciplinas tão inatingíveis como a Química e a Fisiologia. Ambicionava ser cirurgião, e desconfio de que o meu pai lhe pagou muitas contas. De vez em quando, ao domingo à tarde, aparecia para beber uma chávena de chá à pressa, despejar informações fragmentadas sobre gessos, assistentes de cirurgia e turnos de trinta e seis horas sem sono, e partia uma hora depois, carregado de carnes frias e bolos preparados com esmero pela nossa cozinheira.
Os negócios do Pai prosperaram e, passado pouco tempo, já ele administrava vários projectos ao mesmo tempo e fora convidado a integrar diversos conselhos de administração e comissões ligados ao planeamento e às obras públicas. A Mãe andava mais atarefada do que nunca a dar aulas de catequese, a angariar dinheiro para a Female Aid Society e a visitar doentes em hospitais. Eu frequentava uma escola diurna, onde aprendi a tocar pianoforte, Francês, Aritmética e regras de conduta. Graças à tia Eppie, destacava-me na arte da costura». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol, 2007, tradução de Filomena Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-938-5.

Cortesia de CdasLetras/JDACT