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O dono da casa, o coronel Moller, era um homem sensível, capaz de admirar
flores, e não raras vezes colhia algumas e punha-as no cabelo, ou atrás da
orelha. Era imponente, sem ser alto, com um bigode que lhe chegava ao pescoço e
com uma grande quantidade de pelos no nariz. Sabia ser autoritário, e nem outra
coisa se poderia esperar de um oficial do exército, mas também sabia ser
misericordioso, que era, aliás, o seu estado natural. No dia seguinte ao
nascimento de Jozef Sors, o coronel entrou, com o seu filho ao colo, no quarto
da engomadeira. Wilhelm, que tinha pouco menos de um ano, agarrava os bigodes
do pai. O coronel felicitou a senhora Sors. Os nossos filhos estudarão juntos,
disse o coronel. Já falei com o meu amigo Fischmann, cujo sobrinho, um jovem
literato que começou agora a sua carreira de gramático, aceitou ser preceptor
de ambos os rapazes.
A
senhora Sors agradeceu. Havel Kopecky, o sobrinho do meu amigo, é um jovem
muito atento ao que se passa no mundo. Ainda hoje me contou que um físico
alemão chamado Röntgen descobriu uns raios que permitem ver o interior das
coisas. Imagine, senhora Sors, qualquer dia, graças aos raios de Röntgen
poderemos ver o interior do homem. A alma?, perguntou a senhora Sors. Completamente
nua. Um dia poderemos imprimir a alma numa chapa de chumbo. Mas acho que, por
enquanto, vamos apenas poder ver imagens dos nossos ossos. Parece-me horrível,
haverá quem queira ver isso? Ha, ha, há, riu o coronel. Tem toda a razão,
senhora Sors. Que imagem mais sinistra esta, de ver o aspecto que teremos
depois de sete anos dentro de um caixão. Mas é importante, é assim que a
medicina evolui e é por isso que pensamos na vida: porque se contempla a morte.
Ver coisas que vulgarmente não vemos tem gradações de repulsa ou fascínio. Há
um certo pudor quando se vê o que está debaixo das roupas, e, quando vemos
ainda mais fundo, sentimos a vertigem do enjoo, do nojo. Desmaiamos quando
vemos sangue. Não há visão mais terrível que a do interior do homem, seja
anatomicamente seja moralmente. Então é bom? É terrível, mas é útil. Enfim,
isto servia apenas para dizer como tenho em grande estima o futuro preceptor
dos nossos filhos. Tenho andado na biblioteca a escolher alguns livros que considero
imprescindíveis para a educação de uma criança. As crianças precisam é de comer,
disse o mordomo, que acabara de entrar. Para crescerem fortes. Wilhelm
agitou-se ao colo do pai. O coronel, fê-lo encostar a cabeça ao ombro. Wilhelm
ficava sempre ligeiramente agitado quando via o mordomo. Há muitos tipos de
comida, disse o coronel Möller enquanto abanava o filho. Um homem possui três
estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda
a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa
comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água
e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e de
letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do
nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos
olhos e dos ouvidos, apesar de usar tudo o resto de um modo mais subtil. Para
mim, disse o mordomo, as palavras são uma grande palermice.
O
Ponto. A Recta e a Circunferência
Quando
Jozef fez quatro anos, Havel Kopecky começou a educar os dois rapazes. Lia-lhes
textos clássicos sem se preocupar com a idade deles. Quem é que não entende
Séneca?, interrogava-se Kopecky. Wilhelm, apesar de ser um ano mais velho do
que Jozef Sors, demorou mais tempo a aprender a ler. Mas, em compensação, era
capaz de cumprimentar o pai em esperanto, em francês e em latim. O coronel
Möller ficava comovido e respondia: mi amas vin, que queria dizer isso
mesmo, que estava comovido, mas dito na língua de Zamenhof. Porque a senhora
Sors era uma mulher muito pequena, ao contrário do mordomo, que era muito alto,
Jozef escreveu a história de amor dos seus pais, uma história que cativou
Kopecky, acima de tudo pela expressão dos desenhos: a minha mãe é tão pequena
que, vista de longe, parece um pontinho e o meu pai é tão alto que, visto de
longe, parece uma linha, um risco de lápis. Mas vistos de perto são como toda a
gente, têm braços, pernas, nariz e chapéu». In Afonso Cruz, O Pintor Debaixo
do Lava-Loiças, Editorial Caminho, colecção Romance Adulto, 2011, ISBN
978-972-212-615-1.
Cortesia de
ECaminho/JDACT