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Os muçulmanos de Medina podem explorar ideias desse tipo e ser uma ameaça para
todos nós. No Médio Oriente e em outras partes, a sua visão de um retorno violento
à época do Profeta ameaça potencialmente centenas de milhares com a morte e milhões
com a subjugação. No Ocidente, implica não só um risco crescente de terrorismo,
mas também uma subtil erosão das árduas conquistas das feministas e defensores
dos direitos de minorias. Os muçulmanos de Medina também estão solapando a posição
dos muçulmanos de Meca que tentam levar uma vida sossegada nos seus casulos culturais
por todo o mundo ocidental. Mas a ameaça maior é para os dissidentes e
reformistas: os muçulmanos modificados. São eles que enfrentam ostracismo e rejeição,
que têm de sofrer todo o tipo de insulto, lidar com ameaças de morte, ou que
são mortos. Até agora, os seus esforços têm sido difusos e individuais, em
comparação com as acções colectivas altamente organizadas dos muçulmanos de
Medina. É nosso dever para com os dissidentes, para com a sua coragem e
convicção, mudar isso. Cheguei à conclusão de que a única estratégia viável que
pode trazer uma esperança de conter a ameaça representada pelos muçulmanos de
Medina é aliar-me aos dissidentes e reformistas e ajudá-los a: 1. identificar e repudiar as partes do
legado moral de Maomé oriundas de Medina; e 2. persuadir os muçulmanos de Meca a aceitar essa mudança e rejeitar
o chamado dos muçulmanos de Medina à intolerância e à guerra.
Este
não é um livro de história. Não procuro dar uma nova explicação para o facto de
cada vez mais muçulmanos aderirem aos elementos mais violentos do islão na
minha época, por que razão, em resumo, os muçulmanos de Medina estão hoje em
ascensão. Tento refutar a ideia, quase universal entre os liberais do Ocidente,
de que a explicação reside nos problemas económicos e políticos do mundo muçulmano
e que esses problemas, por sua vez, podem ser explicados com base na política
externa ocidental. Isso é atribuir importância demasiada a forças exógenas. Há
outras partes do mundo que lutam para fazer a democracia funcionar ou para lidar
com a riqueza advinda do petróleo. Há outros povos além dos muçulmanos que se
queixam do imperialismo norte americano. No entanto, quase não se tem indício
de algum crescimento de terrorismo, explosões suicidas, guerra sectária,
punições medievais e mortes em nome da honra no mundo não muçulmano. Existe uma
razão para que uma proporção crescente da violência organizada no mundo esteja acontecendo
em países onde o islamismo é a religião de uma parcela substancial da
população.
O
argumento deste livro é que as doutrinas religiosas fazem diferença e precisam
de reforma. Factores não doutrinários, como o uso pelos sauditas das receitas do
petróleo para financiar o wahabismo e o apoio do Ocidente ao regime
saudita, são importantes, mas a doutrina religiosa é mais importante. Por mais
que para muitos académicos ocidentais seja difícil acreditar, quando pessoas
cometem actos violentos em nome da religião, elas não estão tentando dignificar
de alguma forma os seus agravos socio-económicos ou políticos básicos. O islão
está numa encruzilhada. Os muçulmanos, não dezenas ou centenas, mas dezenas de
milhões e até centenas de milhões, precisam tomar a decisão consciente de
confrontar, debater e por fim rejeitar os elementos violentos da sua religião.
Em certo grau, em grande medida devido à repulsa generalizada pelas indizíveis atrocidades
do EI, Al-Qaeda e o resto, esse processo já começou.
Mas,
em última análise, ele requer a liderança dos dissidentes. E estes, por sua
vez, não têm como conseguir sem o apoio do Ocidente. Imagine se, na Guerra
Fria, o Ocidente tivesse apoiado não os dissidentes do Leste Europeu, como
Václav Havel e Lech Walesa, mas a União Soviética, como representante dos comunistas
moderados, na esperança de que o Kremlin nos ajudasse contra terroristas da estirpe
da Facção do Exército Vermelho. Imagine-se um presidente norte-americano sofresse
uma lavagem cerebral e saísse dizendo ao mundo que o comunismo é uma ideologia pacífica.
Isso teria sido desastroso. No entanto, essa é essencialmente a postura do
Ocidente em relação ao mundo muçulmano actual. Nós ignoramos os dissidentes». In
Ayaan Hirsi Ali, Herege, tradução de Laura Motta e Jussara Simões, Editora
Schwarcz, Companhia das Letras, 2015, ISBN 978-854-380-373-9.
Cortesia
de ESchwarcz/CLetras/JDACT