Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) As histórias da avó eram de arrepiar.
Havia as de uma bruxa horrorosa, chamada Matadora ou Carniceira, que tinha a
faculdade de adoptar a aparência de uma pessoa querida, respeitável e, de
súbito, saltava sobre a pessoa, rindo na sua cara, rarararará, e a
matava com a comprida e afiada faca que trazia o tempo todo escondida nas
dobras do vestido. E comia-a inteira. Minha avó também nos contava histórias da
sua juventude, dos bandos de guerreiros que assolavam o deserto, roubando
animais e mulheres, incendiando casarios. Falava sobre todos os desastres
esquecidos da sua vida e da dos seus pais: sobre a peste endémica, a malária e
a seca, que deixavam regiões inteiras despovoadas. Contava da sua vida. Dos
bons tempos, quando as chuvas chegavam e tingiam tudo de verde, quando as
enxurradas enchiam repentinamente o leito dos rios, e havia carne e leite em
abundância. Tentava nos ensinar o que levava à decadência: quando o capim verdejava,
os pastores se entregavam à preguiça e as crianças engordavam. Homens e
mulheres se misturavam, cantando e batucando na penumbra, e isso lhes minava a
precaução, impedindo-os de se prevenir contra o perigo. Tal combinação, dizia,
levava à competição, ao conflito, à desgraça.
Às vezes, nas histórias da avó, surgiam mulheres valentes, mães, como a minha, que se valiam da astúcia e da coragem para salvar os filhos do perigo. Isso nos incutia segurança, de certo modo. A minha avó e também a minha mãe eram destemidas e inteligentes: decerto nos salvariam quando chegasse a nossa vez de enfrentar os monstros. Na Somália, as crianças aprendiam cedo a se precaver contra a traição. As coisas nem sempre eram o que pareciam; o menor deslize podia ser fatal. A moral de todas as histórias da minha avó mirava a nossa honra. Devíamos ser fortes, espertas, desconfiadas; devíamos acatar as normas do clã. A desconfiança era recomendável, principalmente para as meninas. Pois elas podiam ser roubadas. Ou podiam ceder. E aquela que perdesse a virgindade manchava não só a própria honra como a do pai, dos tios, dos irmãos, dos primos. Não havia nada pior do que ser agente de semelhante catástrofe. Por mais que gostássemos das suas histórias, geralmente não dávamos atenção à avó. Ela nos pastoreava quase como as cabras que costumava amarrar na nossa árvore, já que éramos mais desobedientes. O nosso passatempo eram as histórias e as brigas; acho que só vi um brinquedo aos oito anos, quando nos mudamos para a Arábia Saudita. Vivíamos implicando uns com os outros. Haweya e Mahad uniam-se contra mim, ou então Haweya e eu nos uníamos contra Mahad. Mas o meu irmão e eu nunca fazíamos nada juntos. Nós nos detestávamos. Minha avó sempre dizia que era pelo facto de eu ter nascido só um ano depois dele: roubei-lhe o colo da minha mãe. Não tínhamos pai, porque estava na prisão. Eu nem me lembrava dele. A maioria dos adultos que eu conhecia tinha sido criada nos desertos da Somália. País mais oriental e um dos mais pobres da África, a Somália se projectava no oceano Índico, resguardando qual mão protectora a ponta da península Arábica antes de mergulhar no litoral do Quénia. Minha família era de nómadas que percorriam constantemente os desertos do norte e do nordeste em busca de pastagens para os rebanhos. Às vezes, fixavam-se durante uma ou duas estações; quando já não havia água ou pastagem suficiente, ou quando as chuvas não chegavam, pegavam a cabana, punham as esteiras nos camelos e partiam à procura de um lugar melhor para manter os rebanhos vivos. Minha avó sabia tecer tão bem a palha seca que as suas moringas eram capazes de levar água por quilómetros e quilómetros.
Podia fazer a sua própria casinha abobadada de galhos dobrados e esteiras, e depois desmontá-la e carregá-la num mal-humorado camelo de carga. O seu pai, um pastor isaq, morrera quando a avó tinha uns dez anos. A sua mãe casara com o tio dela. (Era uma prática comum. Poupava o dote e evitava problemas.) Quando minha avó fez treze anos, um nómada rico chamado Artan, que já passava dos quarenta, pediu a sua mão a esse tio. Artan era um dhulbahante, uma boa estirpe dos darod. Respeitadíssimo, hábil com os animais e bom viandante, conhecia tão bem o ambiente que sempre sabia quando partir e aonde ir para encontrar a chuva. Os membros dos outros clãs pediam-lhe que arbitrasse as suas disputas. Artan já era casado, mas só tinha uma filha com a mulher, uma menina um pouco menor do que a minha avó. Ao decidir tomar outra esposa, escolheu primeiro o pai da noiva: que fosse um homem de bom clã e de reputação ilibada. A moça tinha que ser trabalhadora, forte, jovem e pura. A avó Ibaado era tudo isso. Artan pagou um lobolo por ela. Dias depois de Artan casar com ela e a levar embora, a minha avó fugiu. Tinha percorrido quase todo caminho de volta ao acampamento da mãe quando o marido a alcançou. Ele consentiu em deixá-la descansar um pouco com a família para se recuperar. Uma semana depois, o seu padrasto levou-a ao acampamento de Artan e lhe disse: este é o teu destino». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006, tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN 978-853-591-109-1.
Às vezes, nas histórias da avó, surgiam mulheres valentes, mães, como a minha, que se valiam da astúcia e da coragem para salvar os filhos do perigo. Isso nos incutia segurança, de certo modo. A minha avó e também a minha mãe eram destemidas e inteligentes: decerto nos salvariam quando chegasse a nossa vez de enfrentar os monstros. Na Somália, as crianças aprendiam cedo a se precaver contra a traição. As coisas nem sempre eram o que pareciam; o menor deslize podia ser fatal. A moral de todas as histórias da minha avó mirava a nossa honra. Devíamos ser fortes, espertas, desconfiadas; devíamos acatar as normas do clã. A desconfiança era recomendável, principalmente para as meninas. Pois elas podiam ser roubadas. Ou podiam ceder. E aquela que perdesse a virgindade manchava não só a própria honra como a do pai, dos tios, dos irmãos, dos primos. Não havia nada pior do que ser agente de semelhante catástrofe. Por mais que gostássemos das suas histórias, geralmente não dávamos atenção à avó. Ela nos pastoreava quase como as cabras que costumava amarrar na nossa árvore, já que éramos mais desobedientes. O nosso passatempo eram as histórias e as brigas; acho que só vi um brinquedo aos oito anos, quando nos mudamos para a Arábia Saudita. Vivíamos implicando uns com os outros. Haweya e Mahad uniam-se contra mim, ou então Haweya e eu nos uníamos contra Mahad. Mas o meu irmão e eu nunca fazíamos nada juntos. Nós nos detestávamos. Minha avó sempre dizia que era pelo facto de eu ter nascido só um ano depois dele: roubei-lhe o colo da minha mãe. Não tínhamos pai, porque estava na prisão. Eu nem me lembrava dele. A maioria dos adultos que eu conhecia tinha sido criada nos desertos da Somália. País mais oriental e um dos mais pobres da África, a Somália se projectava no oceano Índico, resguardando qual mão protectora a ponta da península Arábica antes de mergulhar no litoral do Quénia. Minha família era de nómadas que percorriam constantemente os desertos do norte e do nordeste em busca de pastagens para os rebanhos. Às vezes, fixavam-se durante uma ou duas estações; quando já não havia água ou pastagem suficiente, ou quando as chuvas não chegavam, pegavam a cabana, punham as esteiras nos camelos e partiam à procura de um lugar melhor para manter os rebanhos vivos. Minha avó sabia tecer tão bem a palha seca que as suas moringas eram capazes de levar água por quilómetros e quilómetros.
Podia fazer a sua própria casinha abobadada de galhos dobrados e esteiras, e depois desmontá-la e carregá-la num mal-humorado camelo de carga. O seu pai, um pastor isaq, morrera quando a avó tinha uns dez anos. A sua mãe casara com o tio dela. (Era uma prática comum. Poupava o dote e evitava problemas.) Quando minha avó fez treze anos, um nómada rico chamado Artan, que já passava dos quarenta, pediu a sua mão a esse tio. Artan era um dhulbahante, uma boa estirpe dos darod. Respeitadíssimo, hábil com os animais e bom viandante, conhecia tão bem o ambiente que sempre sabia quando partir e aonde ir para encontrar a chuva. Os membros dos outros clãs pediam-lhe que arbitrasse as suas disputas. Artan já era casado, mas só tinha uma filha com a mulher, uma menina um pouco menor do que a minha avó. Ao decidir tomar outra esposa, escolheu primeiro o pai da noiva: que fosse um homem de bom clã e de reputação ilibada. A moça tinha que ser trabalhadora, forte, jovem e pura. A avó Ibaado era tudo isso. Artan pagou um lobolo por ela. Dias depois de Artan casar com ela e a levar embora, a minha avó fugiu. Tinha percorrido quase todo caminho de volta ao acampamento da mãe quando o marido a alcançou. Ele consentiu em deixá-la descansar um pouco com a família para se recuperar. Uma semana depois, o seu padrasto levou-a ao acampamento de Artan e lhe disse: este é o teu destino». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006, tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN 978-853-591-109-1.
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