Cortesia
de wikipedia e jdact
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Em princípio (não é uma regra), a Índia encara com simplicidade a sucessão das diferentes
formas de que falei: a experiência mística é reservada à idade madura, quando se
está perto da morte: no momento em que faltam as condições favoráveis à
experiência real. A experiência mística ligada a alguns aspectos das religiões
positivas opõe-se às vezes a essa aprovação da vida até na morte, onde eu
vislumbro geralmente o sentido profundo do erotismo. Mas a oposição não é
necessária. A aprovação da vida até na morte é desafio, tanto no erotismo dos
corações quanto no dos corpos, desafio, por indiferença, à morte. A vida é
acesso ao ser: se a vida é mortal, a continuidade do ser não o é. A aproximação
e a embriaguez da continuidade dominam a consideração da morte. Em primeiro
lugar, a desordem erótica imediata nos dá um sentimento que ultrapassa tudo, de
forma que as sombrias perspectivas ligadas à situação do ser descontínuo caem
no esquecimento. E, para além da embriaguez que se abre à vida juvenil, é-nos
dado o poder de abordar a morte de frente, e de aí ver, enfim, a abertura à
continuidade ininteligível, desconhecível, que é o segredo do erotismo e cujo segredo só o erotismo
desvenda. Quem me acompanhou até aqui apreendeu com toda a clareza na unidade
das formas do erotismo o sentido da frase que citei no princípio: não há melhor meio de se familiarizar com a
morte do que associá-la a uma ideia libertina. Falei de experiência mística, não falei de poesia. Não poderia
ter feito isto sem antes penetrar num dédalo intelectual: sentimos tudo o que é
a poesia. Ela nos funda, mas não sabemos falar dela. Não falarei agora, mas
creio tornar mais sensível a
ideia de continuidade que quis salientar e que não pode continuar a ser
confundida com a do Deus dos teólogos, lembrando estes versos de um dos poetas
mais violentos, Rimbaud: foi reencontrada. O quê? A eternidade. o mar de
partida com o Sol. A poesia conduz ao mesmo ponto como cada forma do
erotismo; conduz à indistinção, à fusão dos objectos distintos. Ela nos conduz
à eternidade, à morte, e pela morte, à continuidade: a poesia é l'éternité.
O erotismo, aspecto imediato da
experiência interior, opondo-se à sexualidade animal
O
erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Nisso nos enganamos porque
ele procura constantemente fora um objecto de desejo. Mas este objeto responde
à
interioridade
do
desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do indivíduo:
mesmo se ela recai sobre a mulher que a maioria teria escolhido, o que entra em
jogo é frequentemente um aspecto indizível, não uma qualidade objectiva dessa
mulher, que talvez não tivesse, se ela não nos tocasse o ser interior, nada que
nos forçasse a escolhê-la. Em resumo, mesmo estando de acordo com a maioria, a
escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior,
infinitamente complexa, que é típica do homem. O animal tem ele próprio uma
vida subjectiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objectos
sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade
animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo
que põe nele o ser em questão.
A
própria sexualidade animal introduz um desequilíbrio e este desequilíbrio
ameaça a vida, mas o animal não o sabe. Nele nada se abre que se assemelhe com
uma questão. Seja como for, se o erotismo é a actividade sexual do homem, o é
na medida em que ela difere da dos animais. A actividade sexual dos homens não
é necessariamente erótica. Ela o é sempre que não for rudimentar, que não for
simplesmente animal.
Importância decisiva da passagem do animal
ao homem
Na
passagem do animal ao homem, sobre a qual pouco sabemos, é dada a determinação
fundamental. Dessa passagem, todos os acontecimentos
nos são subtraídos; sem dúvida, definitivamente. Entretanto, nós
estamos menos desarmados do que parece à primeira vista. Sabemos que os homens
fabricaram instrumentos e os utilizaram a fim de prover a sua subsistência,
depois, sem dúvida, bastante depressa, as suas necessidades supérfluas.
Resumindo, eles se distinguiram dos animais pelo trabalho. Paralelamente, eles se impuseram restricções
conhecidas como interditos. Essas
interdicções essencialmente, e certamente, recaíram sobre a atitude para com os
mortos. É provável que elas tenham tocado ao mesmo tempo, ou pela mesma época,
a actividade sexual. A data antiga da atitude para com os mortos aparece nas
numerosas descobertas de ossos recolhidos por seus contemporâneos. Em todo
caso, o homem de Neandertal, que não era inteiramente um homem, que não tinha
ainda atingido rigorosamente a posição erecta, e cujo crânio não diferia tanto
quanto o nosso dos antropóides, enterrou muitas vezes os seus mortos. As
interdicções sexuais não remontam certamente a esses tempos longínquos. Podemos
dizer que elas aparecem por toda a parte onde a humanidade surgiu, mas, na
medida em que devemos nos ligar aos dados da pré-história, não encontramos nada
de tangível que o comprove. O sepultamento dos mortos deixou vestígios, mas
nada subsiste que nos dê mesmo uma indicação sobre as restrições sexuais dos
homens mais antigos». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968,
tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona,
Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.
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