Cortesia
de wikipedia e jdact
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Podemos admitir somente que eles trabalhavam, uma vez que conhecemos os seus instrumentos.
Uma vez que o trabalho, tanto quanto parece, criou logicamente a reacção que determina
a atitude diante da morte, é legítimo pensar que o interdito regulando e limitando
a sexualidade foi também o seu contragolpe, e que o conjunto dos comportamentos
humanos fundamentais,
trabalho, consciência da morte, sexualidade contida, remontam ao mesmo período
distante. Os vestígios do trabalho aparecem desde o paleolítico inferior e o sepultamento mais antigo que
conhecemos data do paleolítico médio.
Na verdade, trata-se de tempos que duraram, segundo os cálculos actuais,
centenas de milhares de anos: esses intermináveis milénios correspondem à
mudança a partir da qual o homem se desvencilhou da animalidade inicial. Ele
escapou trabalhando, compreendendo que morria e passando da sexualidade livre à
sexualidade envergonhada de onde nasceu o erotismo. O homem propriamente dito,
a que chamamos nosso semelhante, que aparece desde os tempos das cavernas
pintadas (o paleolítico superior), é
determinado pelo conjunto dessas mudanças existentes no plano
religioso e que, sem dúvida, ele leva consigo.
O erotismo, a sua experiência interior, e a
sua comunicação relacionados com elementos objectivos e com a perspectiva
histórica em que estes elementos nos aparecem
Há
uma desvantagem nesta maneira de falar do erotismo. Se eu o tomo como a actividade
genética própria do homem, defino-o objectivamente. Relego, todavia, para um segundo
plano, apesar do meu interesse, o estudo objectivo do erotismo. Minha intenção
é, ao contrário, examinar no erotismo um aspecto da vida interior, se quisermos, da vida religiosa do homem. O
erotismo, eu o disse, é aos meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se põe
conscientemente em questão. Em certo sentido, o ser se perde objectivamente,
mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o objecto que se perde. Se for
preciso, posso dizer que, no erotismo, EU me perco. Não é, sem dúvida,
uma situação privilegiada. Mas a perda voluntária implicada no erotismo é
flagrante. Ninguém pode duvidar disso. Falando agora do erotismo, tenho a
intenção de me exprimir sem rodeios em nome do seu sujeito, mesmo se, para
começar, introduzo considerações objectivas. Mas se eu falo dos movimentos do
erotismo objectivamente, devo dizer logo de saída, é que nunca a experiência
interior é dada independentemente de visões objectivas. Nós a encontramos sempre
associada a determinado aspecto, inegavelmente objectivo.
A determinação do erotismo é
primitivamente religiosa e meu livro está mais próximo da teologia que da
história erudita da religião
Insisto:
se às vezes falo a linguagem de um homem de ciência, isto é sempre uma aparência.
O cientista fala de fora, tal como um anatomista do cérebro. (Isto não é inteiramente
verdade: a história das religiões não pode suprimir a experiência interior que se tem ou teve da religião...
Pouco importa se o cientista fez tudo para esquecê-la.) Quanto a mim, eu falo da religião de dentro, como um teólogo fala da
teologia. O teólogo, é verdade, fala de uma teologia cristã. Enquanto a religião de que falo não é, como
o cristianismo, uma religião.
É a religião sem dúvida,
mas ela se define justamente pelo que, desde o princípio, não faz dela uma
religião particular. Não estou falando nem de ritos, nem de dogmas, nem de uma
comunidade determinados, mas só do problema que toda religião se colocou:
assumo este problema, como o teólogo assume a teologia. Mas sem a religião
cristã. Mesmo que só houvesse esta religião, apesar de tudo, eu me sentiria
mesmo assim afastado do cristianismo. Isto é tão verdadeiro que o livro em que
defino esta posição tem o erotismo
como objecto. É sabido que o desenvolvimento do erotismo não é em nada exterior ao domínio da
religião, mas justamente
o cristianismo, opondo-se ao erotismo, condenou a maior parte das religiões. Em
certo sentido, a religião cristã é talvez a menos religiosa. Eu queria que
entendessem com exactidão a minha atitude. Primeiramente eu quis uma total
ausência de pressupostos a fim de que nenhum me parecesse melhor do que outro.
Não há nada que me ligue a alguma tradição particular. Assim, eu não posso
deixar de ver no ocultismo ou no esoterismo um pressuposto que me interessa na
medida em que ele responde à nostalgia religiosa, mas do qual me afasto, apesar
de tudo, uma vez que ele implica uma certa
crença. Digo que, à excepção dos cristãos, os pressupostos ocultistas
são, a meu ver, os mais incómodos, pois ao se afirmarem num mundo em que os
princípios da ciência se impõem, deliberadamente os ignoram». In Georges
Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM
Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.
Cortesia de L&PM/E
Antígona/JDAC