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O Algarismo e o Número
«(…) O primeiro nevão de Inverno cobriu Burgos com um manto branco
de mais de um palmo de altura. A pequena Teresa saiu para a rua, excitada pelo
aviso da criada. Ao abrir a porta, um brilho de luminosa claridade inundou-lhe
os olhos. O Sol brilhava, amarelo, no meio de um céu límpido de um azul intenso
e puro, enquanto a neve branquíssima reflectia os seus raios com tanta força e
fulgor que feria a vista. Entre o azul-celeste e o branco da neve, as casas
ocres da cidade pareciam como que desenhadas pela mão especializada de um delicado
miniaturista.
Teresa tinha agarrado entre as suas mãozinhas de criança um
bom punhado de neve quando ouviu o som inconfundível da trombeta do saião (na
Idade Média, o funcionário da justiça que fazia as citações e executava os
embargos) a anunciar um pregão. À esquina da rua, o pregoeiro avisou aos gritos
que os reis de Espanha e de Leão Fernando e Afonso, tinham acordado uma trégua
que duraria até à Páscoa da Primavera seguinte. A criada, que saíra atrás de
Teresa, suspirou aliviada. Graças à Virgem e ao seu filho Jesus Cristo, o nosso
rei Fernando assinou a paz com o pai, o rei de Leão. Este Inverno será menos
cruel. Dona Berenguela conseguira. Após várias semanas de intensas
conversações, a mãe do rei Fernando obtivera uma trégua do seu antigo marido, o
rei Afonso de Leão. Em troca tivera de ceder ao leonês a possessão de várias praças
fronteiriças, garantira-lhe que não agiria contra as propriedades e direitos
dos Lara e entregara-lhe uma quantia considerável em dinheiro. Mas, em
contrapartida, assegurara a tranquilidade e a paz necessárias para sentar definitivamente
o seu filho Fernando no trono de Castela e ganhar tempo para atrair alguns
grandes do reino, ainda receosos de que fosse o filho do rei de Leão, nascido
de um casamento anulado pela Igreja, a reinar em Castela.
O reino de Castela, após a euforia que tudo contagiou pela
decisiva vitória conseguida em 1212 na Batalha das Navas de Tolosa contra o
império almóada, atravessava momentos muito delicados devido à ambição de
Afonso de Leão. Aquela vitória, conseguida graças à coligação de castelhanos,
aragoneses e navarros, surpreendera o rei de Leão na comarca de Babia, para
onde se costumava retirar para praticar a caça com falcão. Cinco anos depois da
vitória, ainda havia nobres leoneses que recriminavam o seu monarca por não ter
estado presente com as suas tropas naquela crucial batalha, cuja campanha prévia
fora predicada pelo papa Inocêncio III como uma cruzada.
Vamos, Teresa, entra para casa. Está muito frio, ordenou-lhe
a criada. Não; quero ficar aqui a brincar com a neve. Vamos para dentro, o teu
pai vai ficar muito zangado se te constipares e adoeceres. Não tenho frio. Vamos,
para dentro, já disse. Teresa desatou a correr pela rua cheia de neve perseguida
pela criada. A filha do mestre Arnal Rendol ria e tornava a rir ante a lentidão
da criada, incapaz de a alcançar por entre a neve. Umas mãos poderosas
agarraram Teresa e levantaram-na no ar». In José Luís Corral, El Número de Deus,
2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos
Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
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