sexta-feira, 31 de março de 2017

O Número de Deus no 31. José Corral. «Vamos, Teresa, entra para casa. Está muito frio, ordenou-lhe a criada. Não; quero ficar aqui a brincar com a neve»

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O Algarismo e o Número
«(…) O primeiro nevão de Inverno cobriu Burgos com um manto branco de mais de um palmo de altura. A pequena Teresa saiu para a rua, excitada pelo aviso da criada. Ao abrir a porta, um brilho de luminosa claridade inundou-lhe os olhos. O Sol brilhava, amarelo, no meio de um céu límpido de um azul intenso e puro, enquanto a neve branquíssima reflectia os seus raios com tanta força e fulgor que feria a vista. Entre o azul-celeste e o branco da neve, as casas ocres da cidade pareciam como que desenhadas pela mão especializada de um delicado miniaturista.
Teresa tinha agarrado entre as suas mãozinhas de criança um bom punhado de neve quando ouviu o som inconfundível da trombeta do saião (na Idade Média, o funcionário da justiça que fazia as citações e executava os embargos) a anunciar um pregão. À esquina da rua, o pregoeiro avisou aos gritos que os reis de Espanha e de Leão Fernando e Afonso, tinham acordado uma trégua que duraria até à Páscoa da Primavera seguinte. A criada, que saíra atrás de Teresa, suspirou aliviada. Graças à Virgem e ao seu filho Jesus Cristo, o nosso rei Fernando assinou a paz com o pai, o rei de Leão. Este Inverno será menos cruel. Dona Berenguela conseguira. Após várias semanas de intensas conversações, a mãe do rei Fernando obtivera uma trégua do seu antigo marido, o rei Afonso de Leão. Em troca tivera de ceder ao leonês a possessão de várias praças fronteiriças, garantira-lhe que não agiria contra as propriedades e direitos dos Lara e entregara-lhe uma quantia considerável em dinheiro. Mas, em contrapartida, assegurara a tranquilidade e a paz necessárias para sentar definitivamente o seu filho Fernando no trono de Castela e ganhar tempo para atrair alguns grandes do reino, ainda receosos de que fosse o filho do rei de Leão, nascido de um casamento anulado pela Igreja, a reinar em Castela.
O reino de Castela, após a euforia que tudo contagiou pela decisiva vitória conseguida em 1212 na Batalha das Navas de Tolosa contra o império almóada, atravessava momentos muito delicados devido à ambição de Afonso de Leão. Aquela vitória, conseguida graças à coligação de castelhanos, aragoneses e navarros, surpreendera o rei de Leão na comarca de Babia, para onde se costumava retirar para praticar a caça com falcão. Cinco anos depois da vitória, ainda havia nobres leoneses que recriminavam o seu monarca por não ter estado presente com as suas tropas naquela crucial batalha, cuja campanha prévia fora predicada pelo papa Inocêncio III como uma cruzada.
Vamos, Teresa, entra para casa. Está muito frio, ordenou-lhe a criada. Não; quero ficar aqui a brincar com a neve. Vamos para dentro, o teu pai vai ficar muito zangado se te constipares e adoeceres. Não tenho frio. Vamos, para dentro, já disse. Teresa desatou a correr pela rua cheia de neve perseguida pela criada. A filha do mestre Arnal Rendol ria e tornava a rir ante a lentidão da criada, incapaz de a alcançar por entre a neve. Umas mãos poderosas agarraram Teresa e levantaram-na no ar». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.

Cortesia de PEditora/JDACT