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«(…)
Atira uma citação judiciosa à cara de um rival eminente como quem atira uma
faca a um alvo de palha. Com certa desenvoltura, mas acertando em cheio. E
sempre de surpresa. Não foi através das suas leituras que adquiriu essa
técnica. Apurou-a no decorrer de numerosas rixas e brigas de viela. Batendo-se
com adversários pelos quais, ao contrário do que se passa com os cortesãos e os
clérigos, experimentava estima. Fust, seja como for, não se deixa impressionar.
O que o favorece um pouco aos olhos de François. O velho instala-se no seu
lugar com à-vontade, poisando o bastão no chão com um gesto negligente, descalçando
tranquilamente as suas mitenes. Traz no dedo, contrastando com toda a sua
indumentária tão austera, um anel rutilante engastado de um rubi simplesmente
polido. O ouro mate do anel tem cinzelado um dragão cujos olhos minúsculos em
pedra do Reno cintilam ardorosamente. As garras do monstro prendem solidamente a
gema central. Um filete de esmalte flamejante irrompe-lhe das goelas abertas. Sem
deixar a sua posição agachada, François abre o alforge e extrai uma obra do seu
interior. Um relâmpago atravessa o olhar de Fust. As suas faces escavadas, o
seu nariz adunco têm um súbito alerta de ave de rapina. François não estende o
suficiente a mão, obrigando o ourives a debruçar-se demasiado, a ponto de quase
cair da cadeira. Fust, curvando-se profundamente, logra alcançar o volume.
Apodera-se
dele com uma patada lesta e, a seguir, sem hesitar, poisa o dedo sobre o nome
estampado na capa: Kyonghan. O autor, ao que presumo? François adivinha que o
seu interlocutor sabe a resposta. Aquiesce com um leve meneio da cabeça. Fust
esforça-se por manter o seu sangue-frio. Vira as páginas com um ar desprendido.
Ínfimas gotas perlam a sua fronte sulcada de rugas. Começara por recear que
aquela edição do Jikji Simhyong tivesse sido impressa por meio de
caracteres de terracota ou de porcelana. Mas trata-se realmente da de 1377,
composta na Coreia por meio de tipos móveis de metal. Possui já um exemplar
seu, que lhe levou, há quinze anos, a Mogúncia, um judeu vindo da Terra Santa. Fust
sentira-se surpreendido pela qualidade da tinta, pela nitidez da impressão e,
sobretudo, pelo refinamento das letras. O judeu queria saber se Fust, uma vez
que era ourives, seria capaz de reproduzir a liga dos tipos coreanos e se o seu
genro, Petrus Schoeffer, e o seu sócio Johannes Gensfleisch, dito Gutenberg,
poderiam fabricar uma máquina que permitisse a utilização dos caracteres assim
obtidos.
A
prensa original seria demasiado frágil para uma impressão em papel chiffon,
cuja relutância à tinta é maior do que a dos delicados papéis da China. O juiz
pagara um adiantamento em dinheiro e prometera fornecer, a título de recompensa
suplementar, textos raros e inéditos para as primeiras experiências. Johann
Fust poisa o livro e pede para ver um manuscrito cuja descrição o deixou
perplexo. François revolve de novo o interior do saco e extrai dele um rolo de
papel corroído pelo tempo. A caligrafia é pesada e cheia de erros. Trabalho
despachado à pressa de um copista sobrecarregado de encomendas? Não, o velho
livreiro não se deixa induzir em erro. Tira o anel e, com um dedo, prime com
força a cabeça do dragão cinzelado. As garras de ouro retraem-se prontamente, libertando
a gema não facetada. Fust retira o rubi do engaste em que está embutido e fá-lo
assentar sobre o pergaminho. Debruçando-se sobre este, desloca lentamente o
precioso mineral ao longo da página, comprovando que o velino foi raspado.
François, estupefacto, apercebe-se de que a pedra vermelha, espessa e bem
polida, aumenta cada pormenor da página.
Fust
não consegue reprimir um sobressalto. Entre as linhas desastradamente traçadas,
detecta os contornos esbatidos de letras aramaicas. Não foi, por conseguinte,
para recuperar o pergaminho que o copista o raspou com uma lâmina, mas para
camuflar os caracteres originais, inscritos na pele com um estilete e
dissimulados depois pela tinta espessa de um texto anódino. É assim que os
judeus disfarçam as obras que querem salvar das fogueiras da Inquisição (maldita). Trata-se de um
processo fastidioso ao qual só se recorre no caso de escritos talmúdicos ou
cabalísticos da maior importância. No tempo das cruzadas, os cavaleiros
transportavam, sem o saberem, essas obras disfarçadas de piedosos breviários.
Julgavam estar a repatriá-las de Jerusalém para Avinhão ou Frankfurt, nem por
um instante suspeitando que serviam, na realidade, de correios aos rabinos
dessas mesmas cidades». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de
Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015,
ISBN 978-989-724-237-3.
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