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Bastava, em seguida, dissolver a máscara de tinta para deixar à luz do dia a cópia
secreta. Hoje, são os recoveiros de Fust que asseguram, por seu turno, e com
toda a candura, a distribuição de obras clandestinas, astuciosamente mascaradas
de saltérios ou escritos rituais o mais católicos possível. Examinando de novo
a lista com ar entendido, Fust pergunta-se se não terá sido atraído a uma
cilada. Só entre os poderosos há alguém em condições de reunir tantas
raridades. As que aqui se contam valem uma fortuna! A menos que se trate de obras
confiscadas pelos censores. Nesse caso, Villon seria um agente da justiça e não
um correio. Um comerciante discute a soma a acordar, as modalidades do pagamento,
os prazos de entrega. Ora, nenhum preço foi mencionado ainda. O velho observa a
singular personagem sentada no chão que tem à sua frente. Agachada no meio de um
amontoado de encadernações e de rolos de pergaminho, como se vendesse legumes no
mercado. Mas os belos livros são-lhe manifestamente familiares. Manipula-os com
destreza. A sua aparência desleixada contrasta com a elegância natural da sua postura
e o refinamento discreto dos seus gestos. A franqueza do seu olhar seria de molde
a suscitar a confiança de Fust se a não comprometesse um brilho matreiro. Um ténue
trejeito, que lhe vinca a todo o momento o canto dos lábios, exibe um descaramento
que ele não procura de maneira alguma dissimular. Este rapaz não perde tempo com
as maneiras e esgares costumados. Não faz teatro. Pelo contrário, é Fust que se
sente na berlinda, avaliado, posto à prova. O outro desafia-o com o seu sorriso
que não é, convidando-o a entrar em liça, mas sem o forçar inteiramente a fazê-lo.
A curiosidade acaba por levar a melhor sobre a prudência. Posso fazer-vos uma oferta?
O vendedor não quer dinheiro. O impressor de Mogúncia crispa-se da cabeça aos pés
prestes a dar às de vila-diogo, mas Villon sossega-o com uma leve palmada no braço.
Os cantos da boca franzem-se mais marcadamente, acentuando-lhe a expressão maliciosa
do rosto.
Em contrapartida,
está disposto a oferecer-vos a título gracioso todos estes volumes em troca dos
vossos bons serviços. Apanhado de surpresa, o alemão balbucia. Villon expõe sem
mais delongas o desejo que anima Guillaume Chartier de enriquecer a sua diocese
com uma oficina de impressão e algumas obras inéditas. Evita mencionar o rei para
não assustar a sua presa. Fust faz contas rapidamente, hesitando todavia em concluir
um negócio que lhe parece demasiado aliciante para não esconder uma armadilha. Pede
tempo para reflectir, consultar os seus sócios, obter garantias, mas é evidente
que já só tem uma ideia na cabeça: deitar a mão aos livros amontoados aos pés de
François. O velho livreiro despede-se, prometendo dar em breve a sua resposta. Assim
que o vê sair do aposento, Colin pula de alegria, François continua sentado. Guarda
os preciosos volumes no seu alforge, sem nada dizer. Não experimenta um sentimento
de vitória. Custa-lhe ser agente de Guillaume Chartier, obedecer docilmente às
instruções deste eclesiástico hipócrita e falso. E, sobretudo, custa-lhe trair os
livros.
O bispo
de Paris atravessa a calçada soltando imprecações e vociferando, saltitando para
evitar as poças de água. Dois clérigos encapuçados trotam-lhe à ilharga, tentando
em vão abrigá-lo da chuva por meio do pano de um pálio que o vento torce e sacode
em todas as direcções. As valetas da rua Saint-Jacques arrastam lama e detritos
que o prelado enojado repele a golpes de báculo episcopal. Johann Fust precipita-se
para abrir a porta da sua nova loja, enquanto o seu genro, Petrus Schoeffer,
com uma escova na mão, se apresta a limpar com ela a mitra salpicada.
Assim
que entra, Sua Excelência Reverendíssima tapa o nariz. Um odor rude de tinta e de
suor provoca-lhe uma náusea. Fust manda que se interrompa o martelar dos maços e
ordena silêncio aos seus artesãos. Villon, assentando os cotovelos sobre uma prensa
móvel, sorri com um prazer malicioso. Mantém-se à parte, observando o esgar autoritário
do sacerdote, as mímicas obsequiosas de Fust, os trejeitos de aflição dos aprendizes,
como se todos eles se esforçassem por se adaptar da melhor maneira à personagem
que encarnam». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel
Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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