domingo, 9 de abril de 2017

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Tinham acabado a sua refeição de cabrito estufado em azeite, cebola e alho, temperado com cominhos e acompanhado de grão-de-bico, legumes e pão de trigo»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) As mulheres regressaram a casa animadas e descontraídas, mas o pai de Aischa veio ter com elas de semblante preocupado. E anunciou: Ibn Errik conquistou no sábado passado a cidade de Shantarin (Santarém), provocando grande matança entre os crentes.
Muitos dos sobreviventes procuram agora refúgio na nossa cidade. As mulheres ficaram aterrorizadas. Shantarin, ou pelo menos a sua alcáçova, situada num promontório adjacente ao Tejo e rodeada de imponentes muralhas, sempre fora considerada impossível de ser tomada. Aischa perguntava-se se tinham razão aqueles que apontavam forças sobrenaturais a esse... Afonso Henriques. Temos que contar com restrições, acrescentou Malik Ibn Danaf. Os portugueses cortaram o trânsito fluvial entre Shantarin e Lusbuna, muitas das matérias-primas e dos produtos que aqui chegavam através do Tejo vão-nos faltar, como madeira e louças. Mas ainda podemos ser fornecidos a partir do mar, não é verdade?, perguntou Cassima, uma das esposas. Sim, respondeu o mercador. Com a ajuda de Alá, continuarei a ter à disposição tecidos e tapetes para vender. Mas não quererá o rei cristão, lembrou Aischa, conquistar igualmente Lusbuna? Esta pergunta tornou a agitar as mulheres. O pai respondeu sereno: isso já ele pretende há muito, minha filha, mas Lusbuna é muito maior do que Shantarin. Teríamos dez mil homens armados à disposição para defender a cidade. O exército português conta no máximo cinco mil. Aischa lembrou-se do que sua mãe lhe dissera há cinco anos atrás: que milhares de cruzados ajudariam Afonso Henriques a conquistar Lusbuna. E de facto todos já tinham ouvido falar de novas cruzadas, centenas de milhar de combatentes e peregrinos estavam prestes a pôr-se a caminho do Oriente. Aischa olhou para sua mãe. O rosto pálido de Zubaida apresentava, como sempre, indiferença em relação ao que afligia a família, mas a moça notou o brilho febril nos olhos dela. Não se aguentou e perguntou ao pai: e se Ibn Errik receber a ajuda de cruzados? As mulheres explodiram de novo num murmúrio de receios, enquanto lançavam olhares indignados à moça, que não parava de fazer perguntas incómodas. Malik Ibn Danaf manteve a calma: poucos passarão por aqui, a maioria viajará por terra com os reis francos. Além disso, Lusbuna já resistiu a vários ataques dos majus, esses pagãos vindos do norte. Não tenhas medo! E lembra-te de que hoje é um dia muito importante para ti. Amir mantém a sua visita?
Claro. Mas tu sabes que o casamento só se realizará em Junho. Partirei brevemente para Batalyaws (Badajoz), de onde, em companhia do meu irmão, me dirigirei a Ishbiliya (Sevilha) e a Qurtuba em negócios. O tio de Aischa, de seu nome Yussuf, era igualmente um mercador rico em Batalyaws. Não penses em desgraças, insistiu o pai, o serão de hoje pertence-te! Ao vê-la sorrir, murmurou: o Amir nem adivinha a sorte que o espera. Aischa preparou-se para o serão com a ajuda de Flora. Poliu os dentes com um pano de linho grosseiro e refrescou a boca com água de mirra. Vestiu uma túnica amarela, de uma mistura de linho e seda, num processo de tecelagem que dava origem a um relevo em forma de pequenos losangos, e debruada com motivos florais coloridos. Um cinto de corduan, o famoso couro de Qurtuba, macio e flexível como nenhum outro, envolvia-lhe a cinta. A moça enfeitou-se ainda com vários colares e pulseiras de ouro, como o faziam as mouras de al-Andalus em ocasiões especiais. Cobriu a cabeça e o rosto com um véu branco de linho fino e assim apareceu no salão das visitas, no rés-do-chão, onde, além dos homens, também se encontrava a sua mãe. A um canto queimava incenso, numa taça de prata. A espiral de fumo aromático entranhava-se nos tapetes de seda que cobriam as paredes e o chão. Malik Ibn Danaf, os seus dois filhos, Zubaida, Amir e o pai deste estavam sentados em cima de almofadas, à volta de uma mesa baixa. Os jovens estavam vestidos de sedas coloridas, enquanto a mãe de Aischa e os dois homens mais velhos envergavam vestes de brocado de Almeria, seda entretecida de fios de prata. A cabeça e o rosto de Zubaida estavam cobertos por um véu azul-escuro, os homens ostentavam turbantes brancos.
Tinham acabado a sua refeição de cabrito estufado em azeite, cebola e alho, temperado com cominhos e acompanhado de grão-de-bico, legumes e pão de trigo. Sobre a mesa, pousavam tabuleiros de prata com uvas-passas e figos e pêssegos secos. Os copos dos homens continham vinho, pois, apesar de o Corão proibir o consumo de álcool, o cultivo da vinha era tradição entre os mouros de al-Andalus, sobretudo entre os de Lusbuha, cidade que já há muito gozava de uma certa independência em relação ao resto do Gharb, a parte ocidental do território muçulmano. O poeta Ibn Hafaga fora um dos que dedicara versos ao consumo do vinho:

Quantas noites passámos de mão em mão o vinho vermelho-
-laranja enquanto corria uma conversa suave como a brisa que sopra sobre as rosas.
Retomávamos o vinho sem cessar
enquanto a taça aromatizava com o seu hálito perfumado.

Aischa parou à entrada, de olhos postos no chão, o coração quase lhe saltava do peito. O irmão Rashid, de vinte anos, aproximou-se dela, ostentando um sorriso amigável e encorajador. Ela já calculara que poderia contar com a simpatia dele. Em criança, ele sempre tomara o partido dela, em caso de zangas entre as irmãs». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT