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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
As mulheres regressaram a casa animadas e descontraídas, mas o pai de Aischa
veio ter com elas de semblante preocupado. E anunciou: Ibn Errik conquistou no
sábado passado a cidade de Shantarin (Santarém), provocando grande
matança entre os crentes.
Muitos
dos sobreviventes procuram agora refúgio na nossa cidade. As mulheres ficaram
aterrorizadas. Shantarin, ou pelo menos a sua alcáçova, situada num promontório
adjacente ao Tejo e rodeada de imponentes muralhas, sempre fora considerada
impossível de ser tomada. Aischa perguntava-se se tinham razão aqueles que
apontavam forças sobrenaturais a esse... Afonso Henriques. Temos que contar com
restrições, acrescentou Malik Ibn Danaf. Os portugueses cortaram o trânsito
fluvial entre Shantarin e Lusbuna, muitas das matérias-primas e dos produtos
que aqui chegavam através do Tejo vão-nos faltar, como madeira e louças. Mas
ainda podemos ser fornecidos a partir do mar, não é verdade?, perguntou
Cassima, uma das esposas. Sim, respondeu o mercador. Com a ajuda de Alá,
continuarei a ter à disposição tecidos e tapetes para vender. Mas não quererá o
rei cristão, lembrou Aischa, conquistar igualmente Lusbuna? Esta pergunta
tornou a agitar as mulheres. O pai respondeu sereno: isso já ele pretende há
muito, minha filha, mas Lusbuna é muito maior do que Shantarin. Teríamos dez
mil homens armados à disposição para defender a cidade. O exército português
conta no máximo cinco mil. Aischa lembrou-se do que sua mãe lhe dissera há
cinco anos atrás: que milhares de cruzados ajudariam Afonso Henriques a
conquistar Lusbuna. E de facto todos já tinham ouvido falar de novas cruzadas,
centenas de milhar de combatentes e peregrinos estavam prestes a pôr-se a
caminho do Oriente. Aischa olhou para sua mãe. O rosto pálido de Zubaida
apresentava, como sempre, indiferença em relação ao que afligia a família, mas
a moça notou o brilho febril nos olhos dela. Não se aguentou e perguntou ao
pai: e se Ibn Errik receber a ajuda de cruzados? As mulheres explodiram de novo
num murmúrio de receios, enquanto lançavam olhares indignados à moça, que não
parava de fazer perguntas incómodas. Malik Ibn Danaf manteve a calma: poucos
passarão por aqui, a maioria viajará por terra com os reis francos. Além disso,
Lusbuna já resistiu a vários ataques dos majus, esses pagãos vindos do norte.
Não tenhas medo! E lembra-te de que hoje é um dia muito importante para ti. Amir
mantém a sua visita?
Claro.
Mas tu sabes que o casamento só se realizará em Junho. Partirei brevemente para
Batalyaws (Badajoz), de onde, em companhia do meu irmão, me dirigirei a
Ishbiliya (Sevilha) e a Qurtuba em negócios. O tio de Aischa, de seu nome
Yussuf, era igualmente um mercador rico em Batalyaws. Não penses em desgraças,
insistiu o pai, o serão de hoje pertence-te! Ao vê-la sorrir, murmurou: o Amir
nem adivinha a sorte que o espera. Aischa preparou-se para o serão com a ajuda
de Flora. Poliu os dentes com um pano de linho grosseiro e refrescou a boca com
água de mirra. Vestiu uma túnica amarela, de uma mistura de linho e seda, num processo
de tecelagem que dava origem a um relevo em forma de pequenos losangos, e
debruada com motivos florais coloridos. Um cinto de corduan, o famoso couro de
Qurtuba, macio e flexível como nenhum outro, envolvia-lhe a cinta. A moça
enfeitou-se ainda com vários colares e pulseiras de ouro, como o faziam as
mouras de al-Andalus em ocasiões especiais. Cobriu a cabeça e o rosto com um
véu branco de linho fino e assim apareceu no salão das visitas, no rés-do-chão,
onde, além dos homens, também se encontrava a sua mãe. A um canto queimava
incenso, numa taça de prata. A espiral de fumo aromático entranhava-se nos
tapetes de seda que cobriam as paredes e o chão. Malik Ibn Danaf, os seus dois
filhos, Zubaida, Amir e o pai deste estavam sentados em cima de almofadas, à
volta de uma mesa baixa. Os jovens estavam vestidos de sedas coloridas,
enquanto a mãe de Aischa e os dois homens mais velhos envergavam vestes de
brocado de Almeria, seda entretecida de fios de prata. A cabeça e o rosto de
Zubaida estavam cobertos por um véu azul-escuro, os homens ostentavam turbantes
brancos.
Tinham
acabado a sua refeição de cabrito estufado em azeite, cebola e alho, temperado
com cominhos e acompanhado de grão-de-bico, legumes e pão de trigo. Sobre a
mesa, pousavam tabuleiros de prata com uvas-passas e figos e pêssegos secos. Os
copos dos homens continham vinho, pois, apesar de o Corão proibir o consumo de
álcool, o cultivo da vinha era tradição entre os mouros de al-Andalus,
sobretudo entre os de Lusbuha, cidade que já há muito gozava de uma certa
independência em relação ao resto do Gharb, a parte ocidental do território
muçulmano. O poeta Ibn Hafaga fora um dos que dedicara versos ao consumo do
vinho:
Quantas noites passámos de mão em mão o vinho
vermelho-
-laranja enquanto corria uma conversa suave como a
brisa que sopra sobre as rosas.
Retomávamos o vinho sem cessar
enquanto a taça aromatizava com o seu hálito
perfumado.
Aischa
parou à entrada, de olhos postos no chão, o coração quase lhe saltava do peito.
O irmão Rashid, de vinte anos, aproximou-se dela, ostentando um sorriso
amigável e encorajador. Ela já calculara que poderia contar com a simpatia
dele. Em criança, ele sempre tomara o partido dela, em caso de zangas entre as
irmãs». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN
978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT