quinta-feira, 6 de abril de 2017

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Digamos que foi por ter dormido pouco durante a noite que Ricardo Reis adormeceu tão profundamente, digamos que são falácias de mentirosa profundeza espiritual»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim , Lídia, à lareira, como estando, Tal seja, Lídia, o quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora, Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, Lídia, a vida mais vil antes que a morte, já não resta vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado. Também isto não durará. Como a imagem de si mesmo reflectida num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo Reis, suspenso sobre a página recompõe as linhas conhecidas, daqui a pouco poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, Sem nenhum desgosto, contente de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que estar onde está, assim faz quem mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que já era seu, enfim, tudo. A penumbra do quarto tornou-se espessa, alguma nuvem negra estará a passar no céu, um escuríssimo nimbo como seriam os que foram convocados para o dilúvio, os móveis caem em súbito sono. Ricardo Reis faz um gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, e tendo escrito não soube que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas. Vai sentar-se no sofá, recosta-se, fecha os olhos, sente que poderá dormir, nem outra coisa quer, e é já, adormecidamente que se levanta, abre o guarda-fato, retira um cobertor com que se tapa, agora sim, dorme, sonha que está uma manhã de sol e vai passeando pela Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, à ligeira por ser muito o calor, começa a ouvir tiros ao longe, rebentamentos de bombas, explosões, mas não acorda, não é a primeira vez que sonha este sonho, nem sequer ouve que alguém lhe está batendo à porta e que uma voz, de mulher persuasiva, pergunta, O senhor doutor chamou.
Digamos que foi por ter dormido pouco durante a noite que Ricardo Reis adormeceu tão profundamente, digamos que são falácias de mentirosa profundeza espiritual aquelas permutáveis fascinação e tentação, de imobilidade e mudez consoante, digamos que não é isto nenhuma história de deuses e que a Ricardo Reis familiarmente poderíamos ter dito, antes que adormecesse como vulgar humano, O teu mal é sono. Porém, está uma folha de papel em cima da mesa e nela foi escrito, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir, existe pois este papel, as palavras existem duas vezes, cada uma por si mesma e em terem-se encontrado neste seguimento, podem ser lidas e exprimem um sentido, tanto faz, para o caso, que haja ou não haja deuses, que tenha ou não tenha adormecido quem as escreveu, porventura não são as coisas tão simples como estávamos primeiramente inclinados a mostrá-las. Quando Ricardo Reis acorda, é noite no quarto. O último luzeiro que ainda vem de fora quebranta-se nas vidraças embaciadas, no tamis dos cortinados, uma das janelas tem o reposteiro corrido, aí fechou-se a escuridão. O hotel está em grande silêncio, é o palácio da Bela Adormecida, donde já a Bela se retirou ou onde nunca esteve, e todos dormindo, Salvador, Pimenta, os criados galegos, o maître, os hóspedes, o pajem renascentista, parado o relógio do patamar, de repente soou o distante besouro da entrada, deve ser o príncipe que vem a beijar a Bela, chega tarde, coitado, tão alegre que eu vinha e tão triste que eu vou, a Senhora viscondessa prometeu-me, mas faltou». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT