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«O monstro morreu:
em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector
Lilith
«(…) Torno a
alinhar-me a par contigo: as duas sobrepostas. Travo amargo colhido no universo
perverso da inocência, terreno onde o sentimento cede, condenando a
transfiguração do nosso relacionamento. Fica a sobejar somente um vaguíssimo
espaço de fluidos difusos onde absurdamente lenta me distendo, como se boiasse,
mas afinal nadando em ti. Antecipando a fragilidade e o calor uma da outra.
Mexes-te na escuridade onde sonhas e eu te navego pelo
dentro mais fundo, nele batendo com a planta vulnerável dos meus pés. Aí
esbracejo, mergulho e torno à superfície pretendendo salvar-me, e só o leve
pulsar das veias das tuas virilhas me mostram a direcção do teu olhar turquesa,
através do qual destrinço o que não adivinho. Inconstante
tu, e eu obsessiva.
A guiares-me os jeitos, a
radicalizares-me as fantasias e os medos, a influenciares-me os gostos, a
instigares-me à ausência apagando-me o carácter, tentando reduzires-me à tua
imagem e semelhança: clone que recusarei ser pelos trilhos da vida, destino
fora; cidades das quais nada recordarei, nem das matas sombrias, nem dos bosques
frondosos, territórios das fadas, nem das florestas enfeitiçadas, com
árvores por trás das quais se acoitam animais selvagens, idênticos aos que
existem nos quadros de Henri Rousseau. Num deles descobrir-te-ei, mulher nua,
reclinada num canapé, a dialogar com os tigres. Lilith de um paraíso
artificial, impondo regras que tudo confundem, embora me fusionem contigo.
Experimento separar-me, ciente da
contaminação da tua languidez, ausência e superficialidade. Vazio rugoso que
aceito de bom grado, prevendo-te tão bela que escaparás a todo o entendimento,
com uma vagarosa fatalidade feminina de opalas e jaspe, maligna e ameaçadora.
Vistorio a clausura em que me encerras, arrisco seguir o rasto das tuas
estéreis e fúteis decisões apressadas, desconhecendo que,
impaciente, me virás a afastar mais duas vezes, ao longo da nossa vida futura. Com uma negligência
insustentável. Por segundos imagino-me desgraçada,
errando com os teus fantasmas e, rodando, tento conseguir reencontrar a
rosa-dos-ventos, os remos, a bússola, o rumo certo para tornar a achar-te, indo
num impulso incontrolável moldar-me às tuas costas, desejando retomar o odor do
teu pescoço suado, onde curtas madeixas frisadas aderem humedecidas, adensando
o seu ouro de camélia e de madressilva. Respirar-te é um hábito que me há-de
ficar. Enquanto o teu inconsciente traça planos, desenha mapas de crimes
perfeitos, inventa as melhores maneiras de me assassinares, ignorando que te
escuto os pensamentos, enrodilhada no danoso veneno das tuas células, dimensão
do nada a que permiti ser reduzida, copiando-te os genes. No lugar que habitas
deixaste-te adormecer, e ao acordares, transbordante de um amor incondicional,
não te recordarás do ódio que me tiveste, ansiando por me atares de novo às
tuas horas. Ponto dobrado sobre ponto dobrado.
Pesponto de bainha aberta na dobra do
lençol de linho onde rolaremos enoveladas uma na outra, numa espécie de luta
matricial, condenada. Lá fora a lua coalhada num céu azul-cobalto acobertará as
lobas que defendem as crias, enquanto, através da poesia, tentarei descobrir a
melhor maneira de te enfrentar nos dias vindouros, num divã de psicanalista, dando
conta, atónita, das tantas fórmulas que em menina utilizei para te preservar de
ti mesma. Sem remédio.
A minha consciência trocada pela tua. Encolhida quase
consigo esquecer-te, mas ao detectares a minha imobilidade estendes inquieta as
longuíssimas pernas, deixando-me prisioneira. E como é hábito, acabo por ceder:
desencosto a face do cimo dos joelhos unidos de lado, e pela primeira vez
apercebo-me da necessidade cruciante de ar que começa a ganhar-me, encurralada
mas já levada de rojo, apanhada pela corrente num revolteio imprevisível e
desconhecido.
Confusa, tento inutilmente parar,
controlar as contracções e os espasmos que me convocam, a arrastarem-me
consigo; e é nesse instante que lanças um lento e distorcido brado, estridente
e incontido na modulação convulsa, como se simultaneamente te admirasses quando
o ouves. Aturdida, cuido de reencontrar o ar que entretanto deixou de circular
através da tua respiração, deslizando-te na língua, curvo-me sob a pressão
aflita dos dedos crispados com os quais me primes as omoplatas num abraço
imobilizador, sem a preguiça dos habituais movimentos pesados aos quais nunca
te adaptaste, mas a que eu aprendera a ajustar-me». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT