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Carta III
«(…) Isto ainda não é tudo. Há
tragédias misteriosas, mortes ignoradas, casos frustes, que, se forem-se
desvendar, aterrorizariam um comissário de polícia. A mulher é o crime. É
mentirosa, é cínica. Mente por vaidade, crucifica por prazer. São os seus
encantos, a carne palpitante, os cabelos, os beijos, os gozos que amolecem a energia,
a espinha, a cabeça, o orgulho e o dinheiro. É aquela chaga original, a vergonhosa ferida sempre
aberta que sangra e que cheira mal... (d’Annunzio).
Há
homens orgulhosos que pedem de joelhos perdão às mulheres. Mulheres orgulhosas que
sofrem em silêncio as pancadas dos maridos, dos irmãos, dos amantes. E como o
amor tudo transfigura, das rameiras faz santas, dos feios faz belos e arma em
fortes os fracos; livra-te pois do Amor para que não sejas desgraçado. Lembra-te
sempre de que ele é a pior e a mais enganosa das realidades, a mais disfarçada das
ciladas.
Ai
de ti se nele acreditares! Quem ama morre, quem ama avilta-se tão baixo que a própria
lama tem ainda que descer muito para lá chegar.
Carta
IV
Há
uma tela de Rochegrosse intitulada Agoisse
humaine. É um quadro que representa a vida. No primeiro plano muitas
criaturas erguem o braço para chegar mais alto. Homens de casaca tão correctos
como se fossem para um baile. Há mulheres decotadas vestidas em rigor. Homens
condecorados e homens banais, velhos e moços, misturam-se e empurram-se,
disputando-se numa agonia pavorosa, num combate sem nome.
Aquele
monte é a Ambição de subir
de que fala António Vieira. Atrás, pela riba acima, numa escalada
vertiginosa, aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela
ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam, agarrando-se de pés e mãos,
como se após viessem também correndo numa perseguição fantástica, as ondas de um
novo dilúvio.
Todos
daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a
murro, a dente. O caminho que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que
mais parece a fuga de uma derrota. Todas aquelas cabeças têm o ricto de um
Tântalo supremo. São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são pálidos, suados,
cor de terra, um não sei quê de loucura e de pesadelo; os olhos brilhantes,
emoldurados no bistre das insónias e dos tormentos, as mãos crispadas, rapaces,
em foice, os vultos rembrandtescos. São ferozes e são cruéis.
A
tela é violenta e verdadeira. A vida é aquilo, assim enérgica, sinistra,
brutal. Não há trégua, não há descanso. Cada um vigia sempre o seu vizinho, espreita
se ele cai, e tripudia, espreita se ele sobe, e inveja-o. Há um homem de
peitilho engomado e cabelo colado sobre as frontes que, sentado, morto, segura
na mão inerte e suicida a coronha de um revólver.
Um
grande homem brutal, de camisola, pulou, destruiu o último tapume, frágil
afinal como uma convenção, e continua avançando sempre. Toda aquela populaça,
todas aquelas criaturas cuidam só em subir. A certa altura a Morte fixa-se com
suas pupilas de aço, hipnotizantes, e elas caem, rolam, afundam-se lá em baixo,
onde as espera uma cova aberta, algumas sem terem chegado, outras que pararam finalmente,
levando nos olhos um pavor incerto, qualquer coisa de espantoso e indescritível
que faz parar o sangue nas artérias.
Para
cada um que tomba avançam mil. Trava-se um combate em que o mais cruel, o mais
forte, o mais canalha, é que triunfa. Nada de piedade nem de compaixão. Se não
esmagares serás esmagado. Não há tempo de olhar, nem de pensar sequer. Avançar
seja como for, custe o que custar». In
Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira,
Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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