Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Durante o resto da vida, minha avó
foi impecável em tudo. Criou oito meninas e um menino, e nunca houve quem
dissesse uma palavra capaz de lhe de trair a virtude ou o trabalho. Ela
inculcou nos filhos força de vontade, obediência e senso de honra. Pastoreava
os animais, ia buscar lenha, construía cercados de varas rendadas com galhos arrancados.
Tinha mãos e cabeça duras, e, quando o marido presidia às reuniões de clã na
qualidade de árbitro, a avó procurava manter as filhas bem longe e a salvo dos
homens, das cantorias e dos tambores. Só à distância é que elas podiam ouvir os
desafios poéticos e observar os homens trocarem bens e histórias. Minha avó não
tinha ciúme da co-esposa mais velha, embora a mantivesse à distância; quando
esta morreu, tolerou a presença da arrogante enteada Khadija, a garota quase da
sua idade. Artan tinha nove filhas e uma esposa jovem. Era sumamente importante
preservar a honra de todas essas mulheres. Ele as conservava bem longe dos
outros nómades, passando semanas a errar em busca de um lugar com pasto e sem
homens. Viajava incessantemente pelos mais remotos desertos. Debaixo da árvore
da nossa casa de Mogadíscio, a avó sempre falava na bela vaziez (qualidade do que
é ou está vazio) de se sentar diante da cabana que ela construíra com as
próprias mãos e ficar contemplando a vastidão do espaço sem fim.
De certo modo, ela vivia na Idade do
Ferro. Não havia sistema de escrita entre os nómadas. Os artefactos de metal
eram raros e valiosos. Os ingleses e os italianos proclamavam-se senhores da
Somália, mas isso não significava nada para ela. Para a avó, não havia senão os
clãs: os grandes clãs nómadas dos isaq e dos darod, os inferiores agricultores hawiye
e os sab, mais reles ainda. Aos trinta e poucos anos, quando viu um branco pela
primeira vez, ela pensou que o sol tivesse queimado superficialmente,
levemente, a pele do pobre homem. A minha mãe, Asha, nasceu no início da década
de 1940, com a sua gémea idêntica, Halimo. A avó as pariu sozinha, debaixo de
uma árvore. Eram a sua terceira e quarta filhas; ela
tinha uns dezoito anos e estava pastoreando cabras e ovelhas quando sentiu as
dores. Deitou-se e deu à luz; então cortou os cordões umbilicais com a sua
faca. Algumas horas depois, arrebanhou as cabras e ovelhas e conseguiu levá-las
para casa em segurança, antes do anoitecer, carregando as gémeas recém-nascidas.
Ninguém deu importância à façanha: ela apenas tinha levado mais duas meninas
para casa. Para a minha avó, os sentimentos não passavam de uma perversão
imbecil. Mas o orgulho, sim, era importante, orgulho pelo trabalho, orgulho
pela própria força, e a autoconfiança. Se fosse fraca, as pessoas falariam mal.
Se as suas cercas de espinhos não fossem fortes o bastante, os seus animais
seriam atacados por leões, hienas e raposas, o seu marido casaria com outra, as
suas filhas perderiam a virgindade e seus filhos seriam objecto de desprezo. Aos
olhos dela, éramos crianças inúteis. Criadas em uma casa de blocos de cimento,
com telhado sólido, não sabíamos fazer nada que prestasse. Andávamos pelo leito
da rua; a rua da nossa casa não tinha calçada, porém, mesmo assim, era uma via
aberta na terra.Bebíamos água da
torneira. Jamais conseguiríamos achar o caminho de volta se fôssemos pastorear
rebanhos no deserto; não sabíamos nem mesmo ordenhar uma cabra sem levar um
coice.
A avó dedicava a mim um desprezo todo especial. Eu tinha pavor de insectos, por
isso, na sua opinião, eu era uma criança verdadeiramente burra. Quando as suas
filhas completavam cinco ou seis anos, ela já lhes havia ensinado as coisas
mais importantes que precisavam saber para sobreviver. Eu não sabia nada. Minha
mãe também nos contava histórias. Tinha aprendido a cuidar dos animais da
família e a conduzi-los pelos desertos aos lugares mais seguros. As cabras eram
presa fácil para o predador; as meninas também». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006,
tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN
978-853-591-109-1.
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