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e wikipedia
«(…)
Larth falava assim o tempo todo, criando imagens de gigantes e monstros na
paisagem. Ele percebia os espíritos, chamados de numes, que moravam em rochas e
árvores. Às vezes, conseguia falar com eles e ouvir o que eles tinham a dizer.
O rio era o mais velho de seus amigos e lhe dizia qual era o melhor lugar para
pescar. Pelos sussurros do vento, ele podia prever o tempo que iria fazer no dia
seguinte. Devido a tais habilidades, Larth era o líder do grupo. Nós estamos
perto da ilha, não estamos, pai? disse Lara. Como é que percebeu? Os montes.
Primeiro, começamos a ver os montes lá à direita. Os montes vão ficando mais
altos. E pouco antes de chegarmos à ilha, vemos a silhueta daquela figueira lá
em cima, ao longo da crista daquele monte pouco elevado. Muito bem! disse
Larth, orgulhoso da memória e dos poderes de observação da filha. Ele era um
homem forte, bonito, com flocos de cinza na barba preta. A sua mulher tivera
vários filhos, mas todos tinham morrido muito jovens, excepto Lara, a última,
que a mulher morrera dando à luz. Lara era muito preciosa para ele. Tal como a
mãe, tinha cabelos dourados. Agora que atingira a idade de procriar, começava a
exibir a plenitude dos quadris e dos seios de uma mulher. O maior desejo de
Larth era poder viver para ver os netos. Nem todo o homem vivia tanto assim,
mas Larth tinha esperanças. Ele tinha sido saudável a vida toda, em parte,
acreditava ele, devido a ter tido sempre o cuidado de mostrar respeito pelos
numes (ser divino, inspiração) que encontrava nas suas viagens.
Respeitar
os numes era importante. O nume do rio podia sugar um homem para baixo e
matá-lo afogado. O nume de uma árvore podia fazer um homem tropeçar nas suas
raízes ou deixar um galho podre cair na cabeça dele. Rochas podiam ceder quando
pisadas, fazendo estalitos de satisfação com a própria deslealdade. Até o céu,
com um rugido de fúria, às vezes mandava dedos de fogo que podiam torrar um
homem como um coelho no espeto, ou pior, deixá-lo vivo, mas privado do seu
juízo. Larth ficara sabendo que a própria terra podia abrir-se e engolir um
homem; embora nunca tivesse visto realmente uma coisa daquelas, ele fazia um
ritual todas as manhãs, pedindo licença à terra antes de passar por ela. Este
lugar tem algo de muito especial, disse Lara, olhando para o rio brilhante à
sua esquerda e depois para as montanhas rochosas, pontilhadas de árvores, à
frente e à direita. Como é que ele foi feito? Quem o
fez? Larth franziu o cenho. Para ele, a pergunta não fazia sentido. Um lugar nunca
era feito, simplesmente existia. Pequenas
características podiam mudar com o tempo. Arrancada por uma tempestade, uma
árvore podia cair no rio.
Uma
pedra podia decidir rolar pela encosta da montanha. Os numes que animavam todas
as coisas refaziam a paisagem todos os dias, mas as coisas essenciais nunca
mudavam, e sempre existiram: o rio, as montanhas, o céu, o sol, o mar, os
bancos de sal na foz do rio. Ele tentava pensar em alguma maneira de expressar
aqueles pensamentos para Lara, quando uma corça, que bebia no rio, assustou-se
com a aproximação deles. A corça disparou, subindo a margem coberta de mato e
entrando no trilho. Em vez de correr para um local seguro, o animal parou e
olhou para eles. Com uma clareza como se o animal tivesse sussurrado em voz
alta, Larth ouviu as palavras coma-me. A corça estava oferecendo-se. Larth
voltou-se para berrar uma ordem, mas o caçador mais habilidoso do grupo, um
jovem chamado Po, já estava em acção. Po correu para a frente, ergueu a vara
pontiaguda que sempre levava e atirou-a, assobiando, pelo ar entre Larth e
Lara. Um instante depois, a lança atingiu o peito da corça com tamanha força, que
o animal foi atirado ao chão. Impossibilitada de se levantar, ela sacudiu o pescoço
e agitou as longas e esguias patas. Po passou correndo por Larth e Lara. Quando
chegou perto da corça, puxou a lança, retirando-a, e tornou a golpear o animal.
A corça soltou um som abafado, como um suspiro, e ficou imóvel. Ouviu-se uma
ovação vinda do grupo. Em vez de mais um jantar com peixe do rio, naquela noite
haveria carne de veado». In Steven Saylor, Roma, 2007, Bertrand
Editora, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-251-645-7.
Cortesia de
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