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Ossos velhos
«(…) No convés da lancha da
polícia, o tenente D’Agosta observava, com um interesse desprendido, a ascensão
do mergulhador novato à superfície. Era um espectáculo digno de se ver: o
desgraçado esperneava, com os berros meio abafados pela lama e torrentes de
fluidos cor de ocre a sangrarem do fato de mergulho e a mancharem as águas com
a cor do chocolate. Devia ter perdido o contacto com a corda de segurança; de
facto tivera muita, mas mesmo muita sorte em ter conseguido encontrar o caminho
de regresso. D’Agosta aguardou pacientemente enquanto o mergulhador histérico
era trazido a bordo, lhe despiam o fato estanque, o lavavam e acalmavam. Viu o
homem a vomitar por cima da borda, não no convés, notou D’Agosta com aprovação.
Tinha encontrado um esqueleto. Ou mesmo dois, aparentemente. Claro que não era
aquilo que lhe tinham mandado fazer, mas mesmo assim não estava mal, para um
primeiro mergulho. Havia de escrever uma recomendação qualquer, em nome do
desgraçado. Tudo bem, desde que o puto não tivesse ingerido ou respirado
nenhuma daquela mer… que ainda se lhe colava à boca e ao nariz. E mesmo que
fosse esse o caso, bom, os antibióticos que havia por aí costumavam fazer
milagres.
O primeiro esqueleto, quando chegou
à superfície no meio das águas agitadas, ainda estava coberto de imundices. Um
mergulhador que nadava ao lado arrastou-o até junto do casco da lancha de D’Agosta,
embrulhou-o numa rede e subiu ao convés com um certo esforço. A rede, a pingar
e a raspar em tudo quanto era sítio, passou por cima da borda e foi poisada
sobre uma lona, junto aos pés de D’Agosta, como os restos de uma pescaria
macabra. Céus, bem podiam ter passado isso por água!, disse D’Agosta com o
nariz franzido por causa do cheiro a amónia. Agora que fora trazido à superfície,
o esqueleto passava a fazer parte da sua jurisdição. Quem lhe dera que aquela
coisa voltasse à procedência! Era notório que não havia nada no lugar onde era
suposto encontrar-se a cabeça.
Dou-lhe uma mangueirada, chefe?,
perguntou o mergulhador estendendo a mão para a bomba hidráulica. Lava-te
primeiro. O mergulhador tinha um aspecto ridículo, com um preservativo colado à
cabeça e lodo a escorrer-lhe por entre as pernas. Dois outros mergulhadores
subiram a bordo e começaram a puxar por uma nova corda, enquanto um terceiro
trazia à superfície o segundo esqueleto, sustentando-o com a mão livre. Quando
o esqueleto foi parar ao convés, e toda a gente pôde confirmar que também este
não tinha cabeça, gerou-se um silêncio pesado. D’Agosta passou os olhos pelo
enorme tijolo de heroína que entretanto também tinha sido recuperado e que se encontrava
agora devidamente selado num saco de provas. Era como se o tal tijolo tivesse de
súbito perdido toda a importância.
Puxou uma baforada do charuto e desviou
a vista na direcção da Cloaca. Os olhos acabaram por poisar na ancestral boca do
esgoto West Side Lateral. Umas quantas estalactites pingavam do tecto como se fossem
uma fiada de dentinhos. O West Side Lateral era um dos maiores da cidade, drenando
praticamente todos os fluidos do Upper West Side. Cada vez que havia chuvadas
em Manhattan, a central de Tratamento de Esgotos do Lower Hudson atingia a capacidade
máxima e descarregava milhares de litros de desperdícios não reciclados no West
Side Lateral. Precisamente na Cloaca. Com um suspiro profundo deitou os restos do
charuto por cima da borda. Sinto muito, mas vocês vão ter de se molhar outra vez!
Quero essas duas cabeças!» In Douglas Preston e Lincoln Child,
Relicário, O inferno fica debaixo da terra, tradução de João Barreiros, Saída
de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.
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