terça-feira, 18 de abril de 2017

A Trança Feiticeira. Henrique Senna Fernandes. «Ele girava num meio diametralmente oposto ao seu, sobretudo, na língua, na religião e nos hábitos. As diferenças esmagavam»

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«(…) Aquele triunfo no coração arisco da aguadeira exultou e estimulou o brio do Belo Adozinho. À noite, no bilhar, expandiu a sua euforia, pagando cervejas, mesmo àqueles com quem tinha pouca familiaridade. O amigo Florêncio, o que lhe comia gostosamente as migalhas, adivinhou novo negócio de saias. Danou-se. Com uma viúva rica, a cobiçada Lucrécia, perdida de amores, o que é que ele pretendia mais? Que melhor chinela para o pé podia encontrar? Era desafiar demasiado a sorte. Quem é a nova ela? Adozindo encapotou-se num ar de mistério, divertindo-se com o amigo, a desenrolar na mente as possíveis vítimas do garanhão. Não podia confessar que o fruto dos seus amores era uma rústica escultura de pé descalço, correndo pelas ruas, vergada pela canga dum tám-kón (varapau) de aguadeira. Seria rebaixar o seu lustre de conquistador e Florêncio não compreenderia.
Agora, à beira da supina satisfação do seu objectivo, Adozindo já não se contentou com os encontros de passagem, palavras trocadas à pressa. Queria algo de mais demorado, o desejo da posse, a trança enlouquecia-o, cegava a razão e a prudência. A-Leng, por seu lado, vivia em constante consumição. A imagem do moço grudara-se-lhe na mente. Aquilo nunca lhe acontecera. Era analfabeta, não tivera tempo nem dinheiro para frequentar a escola. Mas não era promíscua nem barata, distinguia o que era bem feito e o que não era.
Era sua a sociedade de Cheok Chai Un. Para os de fora, era um antro de má fama, um covil de prostitutas e de facínoras. Mas, para os de dentro, imperava um código de honra, havia uma maneira de ser e de se conduzir, tradições e costumes próprios que tinham de ser cumpridos, sob pena de reprovação geral. Na verdade, não se instalara ali nenhum bordel. A gente que ali habitava, era a sua gente. Crescera na ideia de que a sua existência inteira decorreria no bairro, como as suas companheiras. A intromissão do kuai lou na simplicidade da sua vida complicara esse caminho de antemão traçado. Ele girava num meio diametralmente oposto ao seu, sobretudo, na língua, na religião e nos hábitos. As diferenças esmagavam.
Ficara emudecida, ao visitar o interior da casa dele, num dia em que os donos da casa e demais família, se tinham ausentado, conduzida pela mão da criada A-Sâm, orgulhosa de ostentar onde trabalhava. Os quartos de dormir, a casa de banho, a sala de visitas, a casa de jantar, o gabinete do patrão, empilhado de livros, as mobílias, os tapetes, os cortinados, tudo isto que jamais vira, reduzira-a a um silêncio humilde. Nunca pisara soalho tão brilhante, cheirando a cera, envergonhada por sujá-lo com a lama dos pés, a criada esfregando depois, para não deixar vestígios. O assustador aparelho telefónico cravado na parede, a grafonola de boca hiante, as ventoinhas, a geleira, os sofás e as camas fofas, tudo que os seus olhos e os outros sentidos jamais conheceram.
E o quarto do Menino, tão arranjadinho e perfumado, com o leito de molas de sonho. A arrebitada A-Sâm obrigou-a a experimentá-las e corou com a sensação voluptuosa dos lençóis frescos. Não havia, portanto, termo de comparação com qualquer dos jovens de Cheok Chai Un. Devia logicamente negar-se ao contacto com esse homem que não levava a nada, evitá-lo, manter a hostilidade inicial, para a própria defesa. Mas amolecia triste, a pensar nisso. A sua resistência esfarelava-se. Sentia-se uma mariposa vulnerável, atraída irremediavelmente para a luz da lâmpada, onde queimar-se-ia, mas não sabia fugir». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da FOriente/JDACT