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«O
monstro morreu: em seu lugar nasceu uma
menina que era sozinha». In Clarice Lispector
Daninha
«(…)
Teima em imaginar no infinito um sítio onde possa
ficar. Viver? Mas ela não sabe bem ainda o que isso significa. O infinito sim, e
tenta chegar-se-lhe quando, sentada na clareira de um bosque de bétulas, o seu
olhar claro atravessa os negrores da noite, trazendo até si pela primeira vez a
lua cheia, e geme tão baixo que nem a si mesma se escuta ou sabe que ruído é
aquele que parte da sua garganta, tal como quando começaram a crescer-lhe as
asas, que sempre cuida de tapar da luz do dia, afastadas dos olhares
desconfiados e perigosos de inquisidores sombrios, com a brusquidão e a
severidade da ameaça. Ao passarem por ela, as mulheres persignam-se e seguem
encostadas às paredes e aos muros, o olhar no chão, sem jamais a encararem nos
olhos de azulado cristal glaciar.
Cegueira mate, afirmam, acusando-a de coisas ínvias
e tenebrosas, perniciosas, num desdém equívoco. Insidiosas e matreiras, evitam-na
quanto podem, a desviarem-se do seu caminho na recusa de pousarem os pés nos
passos do seu trilho. Mas, pertinaz, ela não se desvia, grão de pó, noz, bago e
semente, leite do peito e mágoa. Terra. Essência profética, essência poética,
perturbadoras, outras vezes apenas a crueldade no seu eixo vertiginoso e
devorador. A menina esquiva-se de quem dela se afasta, e teme quem lhe tem
medo, recusando olhar a face de quem a acusa de se esconder da luz do dia,
certos de que aprimora o escuro, convoca as trevas, num mesmo gesto arrasador
embora igualmente arredio. Implacáveis juízes da tenebrosidade. Daninha,
julgam-na num murmúrio, sumindo do seu lado e ela faz da fraqueza força,
encolhida, enroscada em si mesma.
Eu sou o Sol e a Lua, eu sou o Mundo, eu sou o nada
e o absoluto…, entende, sem compreender como imaginar o futuro. Ah, as
excessivas, as alumbradas!, exclamam aqueles que referem os êxtases
femininos. Suas visões e vozes que ninguém mais escuta. Elas nunca se distraem
nem iludem.
Depois das palavras vêm as palavras e os nomes, as
expressões lídimas, a dar forma e sentido a tudo, âmago, interioridade. Água e
fogo. Magma. A menina passa a usar uma pequena serpente enrolada no pulso e
rubis disseminados a contaminarem-lhe os sangues, enquanto percorre os
solstícios dos versos com as suas melodias interiores. Proserpina? Tal como ela
raptada, sem no entanto se deixar estiolar no espaço da escuridez para onde
fora arrastada. Reino das profundezas da terra onde resguardara reflexos de sol
numa romã acesa.
Hades.
Tão assustadora quanto a nocturna caverna pantanosa
da Hidra, caverna envenenada pelos seus sete hálitos, junto ao lago de Lerna, e
talvez por isso, também, a menina tema tanto as águas iniciáticas que a natureza
talha, correntezas do universo buscando as enseadas onde ela indefesa
sobrevivia a custo. Escudando-se, no entanto, com a extrema beleza das auroras
boreais, que sempre a conduziam de novo até ao cimo da terra, menina sôfrega a
respirar o ar puro. Porque ela já dançou sobre as estrelas, garantem os
anjos astrónomos. E o Princípio foi o seu início, como se tocasse o absoluto e
soubesse o nada depois do caos.
Eh, Epaine! Daninha, ouve-os a chamarem-na num
sussurro, à sua beira vazia. E ela que antes de nascer chorara dentro da
barriga da mãe, tapa os ouvidos com cera pálida, assusta-se diante dos negrores
de novo e de novo retomados. No entanto, de madrugada forma-se uma geada
acompanhada de neblina translúcida, que nimba os cumes das montanhas mais
altas, e uma ligeira aura rosada tece à sua volta uma levíssima teia, como se fosse
um labirinto onde a pretendessem enredar para sempre.
Ariane, lembra-se de súbito, sem no entanto
destrinçar aquilo que recorda daquilo que sabe mas ilude, assim tripudiando,
querendo escapar ilesa a cada um dos poderes que infringe; pois mesmo sendo-lhe
proibida a árvore do conhecimento, ela comeu o seu fruto, aquele que lhe dá a
entender a sua condição. E o castigo devido à desobediência chega-lhe em forma
de praga premonitória: ela produzirá espinhos e abrolhos! E armará traições ao
teu calcanhar. Ela será o fim e o início. Menina em busca de si mesma, à
sombra da árvore da vida, junto da árvore da ciência do bem e do mal, em
entrega e exposição. E nada existe ocultado à sua própria beira». In Maria Teresa Horta, Meninas,
Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT