quarta-feira, 5 de abril de 2017

A Flor e a Foice. Rentes de Carvalho. «Mas não só o Gama. Depois dele, Francisco Almeida, Afonso Albuquerque e outros vice-reis apareciam como gente da mesma estirpe. Sanguinários, fanáticos...»

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«(…) As descrições que faz das atrocidades, dos crimes, das ladroeiras e das selvajarias cometidas pelos grandes e pequenos homens dos Descobrimentos, extraordinária empresa que pouco mais durou que cinquenta anos, igualarão as feitas por outros historiadores sérios sobre as façanhas igualmente heróicas doutros povos. Espanhóis, holandeses, ingleses e franceses não se comportaram mais santamente. Mas isso pouco importa aqui. O que nos deixou de boca aberta foi a disparidade entre aquela verdade e a que nos tinham dado os compêndios, os mestres e as intermináveis comemorações dos Descobrimentos, da Restauração, do Império, do Dia da Raça e do aniversário de Camões.
Vasco da Gama perdia aquele ar de grão-senhor comedido, protector do indígena: um terramoto agitou o mar da Índia quando o Gama pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do povo português, acreditou e disse que até as próprias ondas tremiam com medo nosso, com medo dele!
Para começar, ordenou o saque de uma nau cheia de peregrinos que iam ou vinham de Meca, trezentos homens, mulheres e crianças e, acabado o saque, carregou-a de pólvora e fê-la explodir. Depois intimou o rajá de Calecute a que expulsasse as famílias mouras da cidade. Não queria expulsar? Vasco da Gama ao fundear diante da cidade apresara um número considerável de mercadores do porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados num barco, foram com a maré varar na praia, levando a resposta à recusa do aflito príncipe.
Mas não só o Gama. Depois dele, Francisco Almeida, Afonso Albuquerque e outros vice-reis apareciam como gente da mesma estirpe. Sanguinários, fanáticos, movidos pelo duplo motor da fé e do lucro. Dê-se-lhes esse desconto: não era só a ganância da pimenta, do ouro, dos diamantes e o aumento do nome e honras do rei, mas igualmente a pressa de pôr o Oriente de joelhos diante da Santa Madre Igreja.
O domínio português, escreve Oliveira Martins, adquiriu logo de começo o carácter duplo que jamais perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularização e de ordem. Era no mar uma anarquia de roubos, na terra uma série de depredações
sanguinárias (...) A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do domínio português, cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.
Demorando a recobrar do choque, a História passou a ter para mim interesse secundário e, desde então, não faço esforço para reprimir a irritação e o pessimismo que sinto perante os grandes feitos. Bondade de soberanos, inteligência de presidentes, coragem de generais, espírito de sacrifício de ministros, argúcia sobrenatural de diplomatas e políticos, guerras de seis dias e guerrilhas de seis anos, tudo isso me dá a calma daquele que, sabendo-se intrujado, sabe igualmente que a sua única e fraca defesa só pode ser a dúvida.
Hoje como ontem. os cronistas purgam a realidade, enfeitam-na com guirlandas de boas intenções e ideais, ao mesmo tempo que os fotógrafos das cortes e das presidências se põem de cócoras em busca do ângulo mais favorável. Depois uns e outros vão meticulosamente retocando, apagam a crueldade, as expressões alarves, a estupidez, a hipocrisia, a ganância, o cinismo, e apresentam ao povo nome e para benefício de quem tudo é feito, a imagem de Épinal que satisfaz as maiorias silenciosas e adormecidas». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores, Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT