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«(…)
As descrições que faz das atrocidades, dos crimes, das ladroeiras e das
selvajarias cometidas pelos grandes e pequenos homens dos Descobrimentos,
extraordinária empresa que pouco mais durou que cinquenta anos, igualarão as
feitas por outros historiadores sérios sobre as façanhas igualmente heróicas doutros
povos. Espanhóis, holandeses, ingleses e franceses não se comportaram mais
santamente. Mas isso pouco importa aqui. O que nos deixou de boca aberta foi a
disparidade entre aquela verdade e a que nos tinham dado os compêndios, os mestres
e as intermináveis comemorações dos Descobrimentos, da Restauração, do Império,
do Dia da Raça e do aniversário de Camões.
Vasco
da Gama perdia aquele ar de grão-senhor comedido, protector do indígena: um
terramoto agitou o mar da Índia quando o Gama pela segunda vez o trilhava; e o
almirante, imagem da bravura épica do povo português, acreditou e disse que até
as próprias ondas tremiam com medo nosso, com medo dele!
Para
começar, ordenou o saque de uma nau cheia de peregrinos que iam ou vinham de
Meca, trezentos homens, mulheres e crianças e, acabado o saque, carregou-a de
pólvora e fê-la explodir. Depois intimou o rajá de Calecute a que expulsasse as
famílias mouras da cidade. Não queria expulsar? Vasco da Gama ao fundear diante
da cidade apresara um número considerável de mercadores do porto, mandou
cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados num barco, foram com a maré
varar na praia, levando a resposta à recusa do aflito príncipe.
Mas
não só o Gama. Depois dele, Francisco Almeida, Afonso Albuquerque e outros
vice-reis apareciam como gente da mesma estirpe. Sanguinários, fanáticos,
movidos pelo duplo motor da fé e do lucro. Dê-se-lhes esse desconto: não era só
a ganância da pimenta, do ouro, dos diamantes e o aumento do nome e honras do
rei, mas igualmente a pressa de pôr o Oriente de joelhos diante da Santa Madre
Igreja.
O
domínio português, escreve Oliveira Martins, adquiriu logo de começo o carácter
duplo que jamais perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de
regularização e de ordem. Era no mar uma anarquia de roubos, na terra uma série
de depredações
sanguinárias
(...) A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do domínio português,
cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.
Demorando
a recobrar do choque, a História passou a ter para mim interesse secundário e,
desde então, não faço esforço para reprimir a irritação e o pessimismo que
sinto perante os grandes feitos. Bondade de soberanos, inteligência de
presidentes, coragem de generais, espírito de sacrifício de ministros, argúcia
sobrenatural de diplomatas e políticos, guerras de seis dias e guerrilhas de
seis anos, tudo isso me dá a calma daquele que, sabendo-se intrujado, sabe
igualmente que a sua única e fraca defesa só pode ser a dúvida.
Hoje
como ontem. os cronistas purgam a realidade, enfeitam-na com guirlandas de boas
intenções e ideais, ao mesmo tempo que os fotógrafos das cortes e das presidências
se põem de cócoras em busca do ângulo mais favorável. Depois uns e outros vão
meticulosamente retocando, apagam a crueldade, as expressões alarves, a estupidez,
a hipocrisia, a ganância, o cinismo, e apresentam ao povo nome e para benefício
de quem tudo é feito, a imagem de Épinal que satisfaz as maiorias silenciosas e
adormecidas». In J. Rentes de Carvalho, Portugal, A Flor e a Foice, Quetzal Editores,
Lisboa, 2014/2015, ISBN 978-989-722-146-0.
Cortesia de
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