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«Trabalhar com nobreza, esperar
com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia».
In
Fernando Pessoa
«(…) Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas,
lê alguns versos apanhados no passar das folhas, E assim , Lídia, à lareira,
como estando, Tal seja, Lídia, o quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora,
Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio,
Lídia, a vida mais vil antes que a morte, já não resta vestígio de ironia no
sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os
dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto agora ou
doloroso esgar se diria em estilo chumbado. Também isto não durará. Como a
imagem de si mesmo reflectida num trémulo espelho de água, o rosto de Ricardo
Reis, suspenso sobre a página recompõe as linhas conhecidas, daqui a pouco
poderá reconhecer-se, Sou eu, sem nenhuma ironia, Sem nenhum desgosto, contente
de não sentir sequer contentamento, menos ser o que é do que estar onde está, assim
faz quem mais não deseja ou sabe que mais não pode ter, por isso só quer o que
já era seu, enfim, tudo. A penumbra do quarto tornou-se espessa, alguma nuvem
negra estará a passar no céu, um escuríssimo nimbo como seriam os que foram
convocados para o dilúvio, os móveis caem em súbito sono. Ricardo Reis faz um
gesto com as mãos, tacteia o ar cinzento, depois, mal distinguindo as palavras
que vai traçando no papel, escreve, Aos deuses peço só que me concedam o nada lhes
pedir, e tendo escrito não soube que mais dizer, há ocasiões assim, acreditamos
na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque
não foi possível calar os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a
tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses,
calados e quietos, assistindo apenas. Vai sentar-se no sofá, recosta-se, fecha
os olhos, sente que poderá dormir, nem outra coisa quer, e é já, adormecidamente
que se levanta, abre o guarda-fato, retira um cobertor com que se tapa, agora
sim, dorme, sonha que está uma manhã de sol e vai passeando pela Rua do
Ouvidor, no Rio de Janeiro, à ligeira por ser muito o calor, começa a ouvir
tiros ao longe, rebentamentos de bombas, explosões, mas não acorda, não é a
primeira vez que sonha este sonho, nem sequer ouve que alguém lhe está batendo
à porta e que uma voz, de mulher persuasiva, pergunta, O senhor doutor chamou.
Digamos que foi por ter dormido pouco durante a
noite que Ricardo Reis adormeceu tão profundamente, digamos que são falácias de
mentirosa profundeza espiritual aquelas permutáveis fascinação e tentação,
de imobilidade e mudez consoante, digamos que não é isto nenhuma história de
deuses e que a Ricardo Reis familiarmente poderíamos ter dito, antes que
adormecesse como vulgar humano, O teu mal é sono. Porém, está uma folha de
papel em cima da mesa e nela foi escrito, Aos deuses peço só que me concedam o nada
lhes pedir, existe pois este papel, as palavras existem duas vezes, cada uma por
si mesma e em terem-se encontrado neste seguimento, podem ser lidas e exprimem
um sentido, tanto faz, para o caso, que haja ou não haja deuses, que tenha ou
não tenha adormecido quem as escreveu, porventura não são as coisas tão simples
como estávamos primeiramente inclinados a mostrá-las. Quando Ricardo Reis acorda,
é noite no quarto. O último luzeiro que ainda vem de fora quebranta-se nas vidraças
embaciadas, no tamis dos cortinados, uma das janelas tem o reposteiro corrido,
aí fechou-se a escuridão. O hotel está em grande silêncio, é o palácio da Bela
Adormecida, donde já a Bela se retirou ou onde nunca esteve, e todos dormindo,
Salvador, Pimenta, os criados galegos, o maître, os hóspedes, o pajem
renascentista, parado o relógio do patamar, de repente soou o distante besouro
da entrada, deve ser o príncipe que vem a beijar a Bela, chega tarde, coitado,
tão alegre que eu vinha e tão triste que eu vou, a Senhora viscondessa
prometeu-me, mas faltou». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo
Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9
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Caminho/JDACT