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As
Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…)
Assobiava às janelas, fugia pelos mercados, quedava-se noite dentro a versejar,
perdia-se em rimas, pasmava no cais a ver partir a carreira da Índia, a ver
chegar a carreira do Reino. Onde estás tu, Luís Vaz? Escapava-se para as
tabernas a ouvir histórias de marinheiros vindos do Oriente. Cismava que ainda
havia de iá ir...
Vem
para casa, Luís Vaz. Dei uma sova ao Dinis, quebrei o braço ao Fernão, roubei
um beijo a Leonor. Volta, Luís Vaz. Ganhei amor ao rapaz. Depois, quis Deus que
Simão entrasse ao serviço dos Armazéns da Casa da Guiné e Índia e logo para lá
se embarcasse, a capitanear a nau Conceição, e que por lá se perdesse. Vi-me
só. Só e com o filho de Ana Macedo para criar. A revolta veio engrossar o amor
que já lhe tinha. Ana: graça e misericórdia ou somente agonia? Havia o destino
de me fazer jus ao nome. Ana Macedo era mulher nobre de Santarém, e não
plebeia, como eu. Simão Vaz de Camões, meu marido, nasceu em Coimbra, de
família galega sem grandes pergaminhos. Foi-lhe concedido o título de
cavaleiro-fidalgo por recompensa de serviços militares e administrativos,
nobreza de segunda ordem. Mas o que nele sempre me encantou foi a ousadia, o
espírito intrépido, a alma forte e apaixonada. Voava como um pássaro. Sempre me
foi fiel. Diziam que a alcunha Camões vinha do pássaro camão, que morrera de
casta paixão vendo o pecado a esvoaçar-lhe por defronte. Precisava Simão de uma
ama forte e robusta para amamentar o filho. A mãe finara-se no dia em que o
dera à luz. Eu acorri ao chamado.
Luís
Vaz nasceu mal se apagou o seu parente Vasco da Gama. Veio ao mundo em casa de
seus pais, à Mouraria, e foi baptizado na Igreja de São Sebastião pelo pároco,
Manuel Correia, homem de poucas falas e rara simpatia. Ainda trago acesa a
lembrança das trovas do sapateiro de Trancoso, o Bandarra. Profetizava ele,
lendo as estreias e colhendo indícios na Sagrada Escritura, que o reino do Encoberto
estava para chegar. Era de ver que semelhante prenúncio ia entregar ao Santo
Ofício (maldito) o pobre sapateiro;
e fora coisa triste vê-lo desfilar no fúnebre cortejo.
Fúnebre
cortejo em vida e na morte é também o que adivinho para Luís Vaz: nem fortuna
terrena nem grandeza eterna, pois que nasceu sob uma má estrela, no desditoso ano
de 1525, com o anúncio do fim do mundo. Lembro-me bem, aguardava-se então, a
cada apavorado amanhecer, o segundo dilúvio anunciado. Profecias, dilúvios, conjugações
do Sol e da Lua e o mundo que não acabava. Mas se o mundo não acabava, tudo
acabava no mundo. A ventura dava lugar à desventura, a meninice à última idade,
o amor à solidão e à saudade, tudo no mundo mudava e, porém, nada mudava no mundo.
…de
novo ao mundo, logo me fizeram
estrelas
infelizes obrigado;
por
força de estrela ou de costume
fujo
do melhor sempre e o pior sigo».
In
Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN
-978-989-741-488-6.
Cortesia de Odo
Livro/JDACT