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Papéis.
1991-2003
As
costureiras das mães
«(…)
Caro presidente, caros jurados,
De
Elsa Morante, cujos livros muito amo, tenho muitas palavras na cabeça. Antes de
vos escrever fui procurar algumas, para nelas me apoiar e delas retirar
consistência. Nos lugares onde me recordava que elas estavam, encontrei muito
poucas. Muitas delas tinham-se escondido. Outras, embora não estivesse à
procura delas, ao folhear os livros reconheci-as, e seduziram-me mais do que
aquelas que procurava. As palavras fazem viagens imprevisíveis na cabeça de quem
as lê. Entre outras, procurava palavras sobre a figura materna, tão central na
obra de Morante, e fiz uma busca em Menzogna e sortilegio, A Ilha de Arturo, La
storia e Aracoeli. Por fim encontrei algumas em Lo scialle andaluso, ao fim e
ao cabo talvez aquelas que eu procurava.
Os
senhores certamente conhecem-nas melhor do que eu, é escusado que vo-las transcreva.
Dizem como é que os filhos imaginam as mães: num estado de eterna velhice, com
olhos santos, com lábios santos, vestidas de preto ou de cinzento ou, no
máximo, de castanho. A princípio, a autora fala de filhos determinados: aqueles
sicilianos severos, honrados, sempre atentos às suas irmãs. Mas, poucas frases depois,
põe de parte a Sicília e passa, parece-me, a uma imagem materna menos local.
Isso acontece com o aparecimento do adjectivo informe. Os vestidos das mães são
informes, e a idade única que têm, a velhice, também é informe, visto que, escreve
Elsa Morante, ninguém, a começar pelas costureiras das mães, vai pensar que uma
mãe tem um corpo de mulher.
Parece-me
muito significativo esse ninguém vai pensar. Quer dizer que o informe é tão
poderoso, ao condicionar a palavra mãe, que o pensamento de filhos e filhas,
quando imagina o corpo para o qual essa palavra devia remeter, não consegue
atribuir-lhe as formas que lhe pertencem, senão com repulsa. Nem as costureiras
das mães o conseguem, apesar de serem criaturas femininas, filhas, mães. Aliás,
por hábito, e de modo irreflectido, talham para a mãe roupas que apagam a mulher,
como se esta fosse lepra para aquela. Fazem-no, e dessa forma os anos que as mães
têm transformam-se num mistério sem importância. e a velhice passa a ser a sua única
idade. Só agora, enquanto escrevo, pensei de modo consciente nessas costureiras
das mães. Mas atraem-me muito, sobretudo se as associar a uma expressão que desde
pequena me despertou curiosidade.
A expressão
é: cortar na casaca. Pensava que escondesse um significado maldoso: uma agressão
maliciosa, um acto violento que destrói as roupas e põe escabrosamente a nu;
ou, pior ainda. Uma arte mágica capaz de te dar forma ao corpo de maneira obscena.
Hoje esse significado já não me parece maldoso nem escabroso. Pelo contrário, até
me seduz a relação entre cortar, vestir, dizer. E acho fascinante que essa relação
tenha dado origem a uma metáfora da maledicência. Se as costureiras das mães
aprendessem a talhar-lhes as roupas desnudando-as, ou se lhas ajustassem de
modo que recuperassem o corpo de mulher que têm, que tiveram, vestindo-as, despiam-nas,
e os seus corpos, a sua idade, deixariam de ser um mistério sem importância.
Quando
Elsa Morante falava das mães e das suas costureiras, talvez estivesse também a falar
da necessidade de reencontrar os seus verdadeiros vestidos e de fazer em
pedaços os costumes que pesam sobre a palavra mãe. Ou talvez não. De qualquer modo,
recordo outras imagens suas (por exemplo, a referência a um sudário materno, definido
como tecedura de amor fresco sobre o corpo da lepra), às quais seria bom abandonarem-se,
para depois ressurgirem como costureiras novas, prontas a combater o erro do Informe».
In
Elena Ferrante, Escombros, 2003, Relógio d’Água Editores, 2016, ISBN
978-989-641-666-9.
Cortesia de Relógio
d’AguaE/JDACT