quinta-feira, 11 de maio de 2017

A marquesa de Santos. Paulo Setúbal. «Olhe que é um bom eito! Isto, sim, é que é viajar! O padre espirrou com estrépito»

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«(…) Três horas da tarde. O coronel João Castro acabara de jantar. Fumava o seu grosso cigarrão de palha, estirado na rede. Nove anos eram decorridos, nove anos bem tumultuosos na província, desde aquela memorável noitada de boda. Quanta coisa, desde então, sucedera por aí afora! A política fervera. A bernarda de Francisco Inácio sacudira a Província. Martim Francisco fora escorraçado da cidade. Os Andradas e os Queirós ferraram-se de unhas e dentes. José Bonifácio, guindado agora às culminâncias do poder, tirava desforras espantosas.
Ah, quanto infortúnio, em meio a isso tudo, viera lancetar a alma de João Castro! Quanto desgosto viera desmanchar a paz de seu envelhecer. Era exactamente a cismar nisso, afundado em tristuras e pensares, que o encanecido coronel, naquela tarde, aos balouços da rede, enchia os compridos ócios da sua sesta modorrenta. Tão vago estava o bom do velho, tão engolfado em melancolias, que nem deu tento ao ruído duns passos, lentos e pesados, que foram varando pelo corredor adentro. Ora viva, coronel! Então que tristeza é essa? João Castro, despertando, ergueu bruscamente a cabeça: oh! Padre Bernardo! Vosmecê! Bons olhos o vejam. Vá entrando...
Era o padre Bernardo Pureza Claraval. O enrugado cura, velho amigo da casa, sentou-se familiarmente numa cadeira de espaldar. Tirou do bolso a boceta de prata. Ofereceu uma pitada a João Castro. Pensei que vosmecê estivesse à espera do Príncipe. Pois estou, sr. pároco! Vim hoje da chácara, onde deixei a mulher e os filhos, só para cumprimentar a Sua Alteza. Não fui aí pelo caminho de Santos, ao encontro da comitiva, porque já não sou mais homem para essas estafadas. Além do mais, como o reverendo bem sabe, o Príncipe é andejo e sacudido; não é qualquer que o acompanha na estrada!
Grande estropiador de cavalos eu sei bem que ele é, retorquiu o pároco; a prova disso é que ainda agora, ao vir de Minas, fez em quatro dias, em quatro dias apenas!, toda a jornada de Vila Rica à Corte. Olhe que é um bom eito! Isto, sim, é que é viajar! O padre espirrou com estrépito. Assoou-se a um vasto lenço de alcobaça. Depois, com um suspiro: assim fosse ele tão bom político como é bom cavaleiro! Pois o reverendo não o acha bom político? À minha fé que não! E como português, exclamou o padre, como português que se preza de o ser, como bom vassalo de João VI, censuro e reprovo o proceder do Príncipe...
Já sei, atalhou João Castro. Já sei! O padre Bernardo, como outra muita gente, cuida que o Príncipe vai fazer a separação. Não se apoquente, sr. pároco! Nem vosmecê, nem eu, haveremos de ver a Independência do Brasil. Esses bufos dos liberais, o palavreado do Clemente Pereira, essas bravatas que andam lá pela corte, tudo isso são gabolices. Patacoadas, padre Bernardo! Patacoadas! Tudo bolha de sabão. Ou eu muito me engano, redarguiu o padre, ou vosmecê tem catarata nos olhos coronel. O perigo é iminente. A coisa estoura já. Toda a colónia está a ferver. E o pior, o mais grave de tudo, é que o Príncipe, o próprio Pedro, é o primeiro a acoroçoar a separação. Só para ganhar aí meia dúzia de palmas e ter uns fumos de popularidade. Que vanglória!
Qual, sr. pároco, as coisas não estão assim tão turvas. Vosmecê é que está aí a atacar moinhos de vento! Moinhos de vento, coronel? Moinhos de vento? Mas então vosmecê julga que são moinhos de vento todos aqueles sucessos que se deram este ano no Rio? Pois é lá caçoada o que ainda agora, neste momento, se passa na corte? Mas olhe um pouco. Ferreteado no seu lusitanismo, a bufar, o velho padre explodiu. Desandou a enumerar as suas cóleras: mas olhe um pouco! E o Revérbero, com o padre Januário à frente, a escrever cachorradas contra a Metrópole. E o Regulador, um pasquim, a berrar pela separação. E a maçonaria, coronel! E a maçonaria do Gonçalves Ledo, peste que já se alastrou pelo Brasil inteiro e que não faz outra coisa senão conjurar contra Portugal». In Paulo Setúbal, A marquesa de Santos, (1925-1935, Wikipedia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.

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