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Três horas da tarde. O coronel João Castro acabara de jantar. Fumava o seu
grosso cigarrão de palha, estirado na rede. Nove anos eram decorridos, nove
anos bem tumultuosos na província, desde aquela memorável noitada de boda. Quanta
coisa, desde então, sucedera por aí afora! A política fervera. A bernarda de Francisco
Inácio sacudira a Província. Martim Francisco fora escorraçado da cidade. Os
Andradas e os Queirós ferraram-se de unhas e dentes. José Bonifácio, guindado
agora às culminâncias do poder, tirava desforras espantosas.
Ah,
quanto infortúnio, em meio a isso tudo, viera lancetar a alma de João Castro!
Quanto desgosto viera desmanchar a paz de seu envelhecer. Era exactamente a
cismar nisso, afundado em tristuras e pensares, que o encanecido coronel,
naquela tarde, aos balouços da rede, enchia os compridos ócios da sua sesta
modorrenta. Tão vago estava o bom do velho, tão engolfado em melancolias, que
nem deu tento ao ruído duns passos, lentos e pesados, que foram varando pelo corredor
adentro. Ora viva, coronel! Então que tristeza é essa? João Castro,
despertando, ergueu bruscamente a cabeça: oh! Padre Bernardo! Vosmecê! Bons
olhos o vejam. Vá entrando...
Era
o padre Bernardo Pureza Claraval. O enrugado cura, velho amigo da casa, sentou-se
familiarmente numa cadeira de espaldar. Tirou do bolso a boceta de prata.
Ofereceu uma pitada a João Castro. Pensei que vosmecê estivesse à espera do
Príncipe. Pois estou, sr. pároco! Vim hoje da chácara, onde deixei a mulher e
os filhos, só para cumprimentar a Sua Alteza. Não fui aí pelo caminho de
Santos, ao encontro da comitiva, porque já não sou mais homem para essas
estafadas. Além do mais, como o reverendo bem sabe, o Príncipe é andejo e
sacudido; não é qualquer que o acompanha na estrada!
Grande
estropiador de cavalos eu sei bem que ele é, retorquiu o pároco; a prova disso
é que ainda agora, ao vir de Minas, fez em quatro dias, em quatro dias apenas!,
toda a jornada de Vila Rica à Corte. Olhe que é um bom eito! Isto, sim, é que é
viajar! O padre espirrou com estrépito. Assoou-se a um vasto lenço de alcobaça.
Depois, com um suspiro: assim fosse ele tão bom político como é bom cavaleiro!
Pois o reverendo não o acha bom político? À minha fé que não! E como português,
exclamou o padre, como português que se preza de o ser, como bom vassalo de
João VI, censuro e reprovo o proceder do Príncipe...
Já
sei, atalhou João Castro. Já sei! O padre Bernardo, como outra muita gente,
cuida que o Príncipe vai fazer a separação. Não se apoquente, sr. pároco! Nem
vosmecê, nem eu, haveremos de ver a Independência do Brasil. Esses bufos dos
liberais, o palavreado do Clemente Pereira, essas bravatas que andam lá pela corte,
tudo isso são gabolices. Patacoadas, padre Bernardo! Patacoadas! Tudo bolha de
sabão. Ou eu muito me engano, redarguiu o padre, ou vosmecê tem catarata nos olhos
coronel. O perigo é iminente. A coisa estoura já. Toda a colónia está a ferver.
E o pior, o mais grave de tudo, é que o Príncipe, o próprio Pedro, é o primeiro
a acoroçoar a separação. Só para ganhar aí meia dúzia de palmas e ter uns fumos
de popularidade. Que vanglória!
Qual,
sr. pároco, as coisas não estão assim tão turvas. Vosmecê é que está aí a
atacar moinhos de vento! Moinhos de vento, coronel? Moinhos de vento? Mas então
vosmecê julga que são moinhos de vento todos aqueles sucessos que se deram este
ano no Rio? Pois é lá caçoada o que ainda agora, neste momento, se passa na corte?
Mas olhe um pouco. Ferreteado no seu lusitanismo, a bufar, o velho padre
explodiu. Desandou a enumerar as suas cóleras: mas olhe um pouco! E o Revérbero,
com o padre Januário à frente, a escrever cachorradas contra a Metrópole. E o Regulador,
um pasquim, a berrar pela separação. E a maçonaria, coronel! E a maçonaria do
Gonçalves Ledo, peste que já se alastrou pelo Brasil inteiro e que não faz
outra coisa senão conjurar contra Portugal». In Paulo Setúbal, A marquesa de
Santos, (1925-1935, Wikipedia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN
978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.
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