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Logo após, conduzida pelo braço de Boaventura Delfim Pereira, entre duas alas,
debaixo de flores, surge a Titília. Vem leve e fina. Está encantadoramente pálida.
Encaminha-se radiosa para o altar. Com o seu vestido branco, a grinalda branca,
luvas brancas, os botões brancos de flor de laranjeira, a longa cauda branca,
sustida por dois priminhos, a noiva passa tão fascinadora, tão esvoaçante e bela,
os olhos tão húmidos, a boca orvalhada, que todos, velhos e moços, matronas e raparigas,
parentes e não-parentes, todos, ao vê-la têm uma só exclamação: que linda! Que
linda!
A
própria Maria Rita Almeida Sousa Faro, do alto do seu orgulho e da sua chocante
arrogância, não pôde reprimir a sua admiração: bela cachopa! Ouviu a frase
certo figurão exótico, chegado há pouco da corte, cavalheiro muito alto e muito
magro, com uns bigodes negros muito retorcidos. O homem virou-se para o marido
da dama, o belo Francisco Lorena, e concordou baixinho: é verdade. Que
rapariga, sr. Francisco! Aquilo, sim, é rapariga e tanto! O padre Bernardo
realizou o acto. Lágrimas de Escolástica. Soluços de prima Angélica. Abraços.
Parabéns. Comovidos apertos de mão. Foi então que principiou, com efervescente
cordialidade, a festa grandiosa.
Lá
dentro, aboletados à mesa, depois do brinde do Ouvidor, os convivas devastavam
arrasadoramente os castelos de fios-de-ovos e as compoteiras de batata roxa. Cá
fora, na sala da frente, onde rompera fragorosa orquestra, ia o torvelinho das
danças. Ruidoso saracoteio de rapazes e de raparigas. Tudo a rir! A papaguear!
De quando em quando, no intervalo das marcas, aparecia na sala uma preta
gordalhuda, mucama pimpona e fresca, com a sua saia de refolhos engomados,
carregando colossal bandeja de balas de ovos e doces secos. Como todos a
conheciam, quem não havia de conhecer a Bastiana?, eram ditinhos daqui, piadas
dacolá. Foi você quem fez o suspiro, Bastiana? Não fui. Foi Nhanhã. Mas não
ficou bem batido. Antes prove a queijadinha...
Súbito,
em meio aos ditos, o Moraizinho, rapazola esbelto e louro, aquele mesmo antigo
apaixonado da Titília, adiantou-se até o meio da sala. Bateu palmas. E no
silêncio que se fez: ó Chalaça! Eu estou incumbido, em nome das moças, de pedir
a você que cante um lundu... Reboou larga tempestade de aplausos. Bravos! Um
lundu! Bravos! O estranho personagem viera há pouco da corte. Estava de
passagem por São Paulo. Era aquele cavalheiro muito alto, muito magro, com uns
bigodes pretos muito retorcidos. Chamava-se Francisco Gomes Silva. Tinha a
alcunha de Chalaça. Era grande boémio. Exímio cantador de modinhas. Diante dos
pedidos, não teve ele outro remédio senão pegar no violão. Sentou-se no meio da
sala. E sorrindo: que lundu há de ser? O Moraizinho de certo conhecia bem o
repertório do homem. Bradou sem hesitar: o Lundu do Capoeira!
O
Chalaça afinou o instrumento. Ajeitou-o ao peito. E pôs-se a repicar O Lundu do
Capoeira. Que sucesso! O estribilho fazia furor. Toda a gente ria ante os trejeitos
e momices do cantador: Ai, ai, ai meu cobre é que lá vai... Meu cobre é que
lá vai...
Naquele
baile, a 13 de Janeiro de 1813, ninguém poderia jamais supor, nem imaginar de
leve, que aquele figurão exótico, o Francisco Gomes Silva, o Chalaça,
violinista folião, cantador de lundus, se tornasse em breve, no cenário do Brasil,
personagem do mais alto destaque, Comandante da Guarda de Honra, Secretário
Privado, Conselheiro de Estado, Comendador do Império, grande favorito do
Príncipe. Ninguém poderia também supor, nem imaginar de
leve, que a pequena Titília Castro, a endemoninhada caçula do coronel João
Castro, fosse em breve, entre as adulações e lisonjas de toda uma corte, a
imensa, a tresloucada paixão de Pedro I: fosse essa adorável marquesa de
Santos, de tão reboante fama, a única mulher, na História das Américas, que
encheu um Império com o ruído do seu nome e o escândalo do seu amor». In
Paulo Setúbal, A marquesa de Santos, (1925-1935, Wikipedia, Editora Geração
Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.
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