quinta-feira, 11 de maio de 2017

A marquesa de Santos. Paulo Setúbal. «Ninguém poderia também supor, nem imaginar de leve, que a pequena Titília Castro, a endemoninhada caçula do coronel João Castro…»

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«(…) Logo após, conduzida pelo braço de Boaventura Delfim Pereira, entre duas alas, debaixo de flores, surge a Titília. Vem leve e fina. Está encantadoramente pálida. Encaminha-se radiosa para o altar. Com o seu vestido branco, a grinalda branca, luvas brancas, os botões brancos de flor de laranjeira, a longa cauda branca, sustida por dois priminhos, a noiva passa tão fascinadora, tão esvoaçante e bela, os olhos tão húmidos, a boca orvalhada, que todos, velhos e moços, matronas e raparigas, parentes e não-parentes, todos, ao vê-la têm uma só exclamação: que linda! Que linda!
A própria Maria Rita Almeida Sousa Faro, do alto do seu orgulho e da sua chocante arrogância, não pôde reprimir a sua admiração: bela cachopa! Ouviu a frase certo figurão exótico, chegado há pouco da corte, cavalheiro muito alto e muito magro, com uns bigodes negros muito retorcidos. O homem virou-se para o marido da dama, o belo Francisco Lorena, e concordou baixinho: é verdade. Que rapariga, sr. Francisco! Aquilo, sim, é rapariga e tanto! O padre Bernardo realizou o acto. Lágrimas de Escolástica. Soluços de prima Angélica. Abraços. Parabéns. Comovidos apertos de mão. Foi então que principiou, com efervescente cordialidade, a festa grandiosa.
Lá dentro, aboletados à mesa, depois do brinde do Ouvidor, os convivas devastavam arrasadoramente os castelos de fios-de-ovos e as compoteiras de batata roxa. Cá fora, na sala da frente, onde rompera fragorosa orquestra, ia o torvelinho das danças. Ruidoso saracoteio de rapazes e de raparigas. Tudo a rir! A papaguear! De quando em quando, no intervalo das marcas, aparecia na sala uma preta gordalhuda, mucama pimpona e fresca, com a sua saia de refolhos engomados, carregando colossal bandeja de balas de ovos e doces secos. Como todos a conheciam, quem não havia de conhecer a Bastiana?, eram ditinhos daqui, piadas dacolá. Foi você quem fez o suspiro, Bastiana? Não fui. Foi Nhanhã. Mas não ficou bem batido. Antes prove a queijadinha...
Súbito, em meio aos ditos, o Moraizinho, rapazola esbelto e louro, aquele mesmo antigo apaixonado da Titília, adiantou-se até o meio da sala. Bateu palmas. E no silêncio que se fez: ó Chalaça! Eu estou incumbido, em nome das moças, de pedir a você que cante um lundu... Reboou larga tempestade de aplausos. Bravos! Um lundu! Bravos! O estranho personagem viera há pouco da corte. Estava de passagem por São Paulo. Era aquele cavalheiro muito alto, muito magro, com uns bigodes pretos muito retorcidos. Chamava-se Francisco Gomes Silva. Tinha a alcunha de Chalaça. Era grande boémio. Exímio cantador de modinhas. Diante dos pedidos, não teve ele outro remédio senão pegar no violão. Sentou-se no meio da sala. E sorrindo: que lundu há de ser? O Moraizinho de certo conhecia bem o repertório do homem. Bradou sem hesitar: o Lundu do Capoeira!
O Chalaça afinou o instrumento. Ajeitou-o ao peito. E pôs-se a repicar O Lundu do Capoeira. Que sucesso! O estribilho fazia furor. Toda a gente ria ante os trejeitos e momices do cantador: Ai, ai, ai meu cobre é que lá vai... Meu cobre é que lá vai...
Naquele baile, a 13 de Janeiro de 1813, ninguém poderia jamais supor, nem imaginar de leve, que aquele figurão exótico, o Francisco Gomes Silva, o Chalaça, violinista folião, cantador de lundus, se tornasse em breve, no cenário do Brasil, personagem do mais alto destaque, Comandante da Guarda de Honra, Secretário Privado, Conselheiro de Estado, Comendador do Império, grande favorito do Príncipe. Ninguém poderia também supor, nem imaginar de leve, que a pequena Titília Castro, a endemoninhada caçula do coronel João Castro, fosse em breve, entre as adulações e lisonjas de toda uma corte, a imensa, a tresloucada paixão de Pedro I: fosse essa adorável marquesa de Santos, de tão reboante fama, a única mulher, na História das Américas, que encheu um Império com o ruído do seu nome e o escândalo do seu amor». In Paulo Setúbal, A marquesa de Santos, (1925-1935, Wikipedia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.

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