Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Ouvi dizer que numa nação vizinha, não sei se na França ou onde quer que seja,
existe uma ordem do rei segundo a qual quando um criminoso é condenado, seja à
morte, às galés ou ao degredo, se deixa filhos, que em geral ficam sem recursos
devido à pobreza dos pais ou porque seus bens lhe foram confiscados, o governo
toma-os imediatamente à sua guarda e interna-os numa instituição chamada Casa
dos Órfãos, onde são criados, vestidos, alimentados e instruídos, e quando
estão em idade de deixá-la são encaminhados para ofícios ou outras ocupações,
de forma a serem capazes de prover o próprio sustento e conduzir-se com
honradez e honestidade.
Fora
esse o costume em nosso país, eu não teria sido uma pobre menina abandonada,
sem amigos, sem roupas, sem ajuda nem valimento neste mundo, como foi o meu
destino; e em resultado disso não só fiquei exposta a imensos infortúnios,
antes mesmo que pudesse compreender minha situação ou saber como remediá-la,
como fui levada a um modo de vida que, além de escandaloso em si mesmo, de
ordinário conduzia à rápida destruição do corpo e da alma.
No
entanto, aqui os factos são outros: minha mãe foi condenada por delito tão
insignificante que quase não vale a pena registrá-lo, em resumo, ela se
aproveitou da oportunidade de tomar emprestadas três peças de holanda fina a
certo negociante de Cheapside; as circunstâncias em que ocorreu o episódio são
longas demais para serem repetidas, e já as ouvi tantas vezes e de formas tão
diferentes que não há como ter certeza de qual é a versão correcta. Seja como for, numa coisa todos concordam: minha mãe
invocou o estado de seu ventre e, tendo sido comprovado que estava grávida,
foi-lhe concedida a suspensão temporária da execução por cerca de sete meses;
ao cabo desse período trouxe-me ao mundo e, quando se recuperou, a Justiça
ratificou, como se diz, a sentença anterior, mas concedeu-lhe a graça de ser
deportada para as plantations
das colónias da América; minha mãe me deixou quando eu tinha cerca de seis
meses de idade; e, acreditem, deixou-me em funestas mãos.
Por
se tratar de factos ocorridos perto demais de meu nascimento, não posso contar
nada de que eu mesma me lembre, somente o que ouvi dizer; basta mencionar que,
por ter nascido em lugar tão desditoso, eu não tinha paróquia a que recorrer
para alimentação na infância, nem posso dar nenhuma informação sobre como
sobrevivi, a não ser, segundo me contaram, que alguma parenta de minha mãe
cuidou de mim durante algum tempo como ama de leite, mas nada sei, em absoluto,
às custas ou sob ordem de quem. Os primeiros factos que recordo, ou de que
tomei conhecimento por mim mesma, foram as minhas andanças com um clã dessa
gente a que se dá o nome de ciganos, ou egípcios; acredito tenha passado muito
pouco tempo com eles, uma vez que não chegaram a descorar ou escurecer a minha
pele, como logo fazem com todas as crianças que levam consigo nas suas
errâncias, nem saberia dizer como fui parar no meio deles nem como os deixei.
Foi
em Colchester, Essex, que essa gente me largou, e tenho certa ideia de que fui
eu que os larguei ali (ou seja, eu me escondi, por não querer mais continuar em
companhia deles), mas não tenho como dar pormenores sobre tal assunto: só
lembro que, ao ser acolhida por representantes da paróquia de Colchester,
disse-lhes que chegara à cidade com os ciganos e não queria seguir viagem com
eles, e por isso haviam-me abandonado, mas ignorava para onde tinham partido,
tampouco os paroquianos esperavam que eu o soubesse; estiveram a procurá-los em
toda a região, mas, ao que parece, em vão. Encontrava-me agora numa situação em
que as minhas necessidades seriam atendidas, pois, ainda que pela lei eu não
fosse pupila da paróquia ou daquela área da cidade, quando o meu caso se tornou
conhecido e viu-se que eu era pequena demais para qualquer espécie de trabalho,
pois não tinha mais que três anos, a compaixão levou os magistrados da cidade a
determinar que cuidassem de mim de alguma forma, e me tornei natural do lugar,
mesmo sem ter nascido ali». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A vida
Amorosa de Moll Flanders, Publicações Europa América, 1998, ISBN
978-972-104-443-2.