quarta-feira, 31 de maio de 2017

Gutenberg no 31. O Livro dos Prazeres Proibidos. Federico Andahazi. «No entanto, desde que uma série de factos macabros irrompeu no Mosteiro da Sagrada Canastra, o habitual clima festivo dera lugar a um silêncio compacto»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As seis torres da basílica de St. Martin cravavam as suas agulhas afiladas na névoa nocturna, desapareciam na bruma e voltavam a aparecer por cima do tecto etéreo que cobria a cidade de Mainz. Um românico e outro bizantino, ambos os absides da catedral se impunham sobre as outras cúpulas da cidade. Mais além, as águas do Reno deixavam à mostra as ruínas da velha ponte de Trajano, que, assim como o esqueleto de um monstro encalhado, jazia entra as duas margens do rio. Os tectos de ardósia enegrecida do castelo e os cinquenta arcos do antigo aqueduto romano coroavam o orgulhoso cume da colina da Zitadelle. A poucas ruas da basílica erguia-se o pequeno Mosteiro das adoradoras da Sagrada Canastra. A rigor, aquele austero edifício de três andares que se alçava na Korbstrasse, perto do Marktplatz, não era exactamente um mosteiro. Pouca gente sabia que, atrás da sóbria fachada, se ocultava o bordel mais extravagante e luxurioso do Império, o que, certamente, significava muita coisa. O nome do bordel era resultado da conjunção do nome da rua em que estava situado e da devota dedicação com que as prostitutas da casa se encarregavam de dar prazer aos privilegiados clientes.
Durante o dia, naquele beco pavimentado, eram abertas as persianas das lojas dos fabricantes de canastras, cujos principais clientes eram os barraqueiros da praça do mercado. Mas, quando a noite caía e os cesteiros fechavam as suas portas, a rua voltava a se animar com a farra das tavernas e das canções vulgares das prostitutas, que, inclinadas nas janelas, exibiam os seus decotes generosos aos passantes. Diferentemente dos bordéis comuns, pintados de cores vivas e apinhados de mulheres desdentadas, hediondas e assanhadas, o mosteiro passava virtualmente despercebido. As meretrizes da casa eram donas de um recato sensual e de uma lasciva religiosidade que despertavam tentações semelhantes às que suscitavam as jovens virgens que habitavam os conventos. Quantos homens nutriam o desejo secreto de participar de uma orgia com as monjas de uma irmandade? Talvez a realização daqueles lúbricos anseios fosse o segredo do sucesso da singular casa de prostitutas.
No entanto, desde que uma série de factos macabros irrompeu no Mosteiro da Sagrada Canastra, o habitual clima festivo dera lugar a um silêncio compacto, feito com a argamassa do terror. Quando o sol se punha, uma espera angustiante apoderava-se das mulheres, como se uma nova tragédia fosse se precipitar. Naquela noite de 1455, o medo estava tão denso quanto a névoa que abraçava a cidade. Os bordéis vizinhos e as tavernas já haviam fechado as portas. A bruma parecia uma ave de mau agouro sobrevoando os telhados. No mosteiro restava apenas um punhado de clientes. As mulheres suplicavam a Deus para não serem escolhidas pelos visitantes. A única coisa que queriam era trancar-se nos seus aposentos, se entregar ao sono e esperar que, nas janelas, surgisse um novo amanhecer.
Zelda, uma das prostitutas mais requisitadas do bordel, estava ali havia bastante tempo e podia escolher os seus clientes e decidir quando e como ofereceria os seus serviços. Assim, fazendo uso de suas bem-conquistadas prerrogativas, deu a noite por encerrada, correu o ferrolho na porta de seu claustro e trocou as cobertas da cama. Antes de se preparar para dormir, foi à janela: a rua estava vazia, e a névoa quase não permitia ver os prédios da calçada oposta. Fechou as persianas e passou o grande trinco que travava as janelas. Sentada na beira da cama, tirou a roupa como se quisesse desembaraçar-se não somente do espartilho que lhe apertava o ventre e as costelas, mas de qualquer vestígio da jornada que acabara de terminar. Humedeceu
 um lenço de algodão numa bacia com água de rosas e depois friccionou-o pelo corpo com movimentos lentos e repetitivos. Como se se tratasse de um ritual religioso íntimo, de uma espécie de unção autoimposta, Zelda passava o tecido empapado na pele com a solenidade de uma sacerdotisa. Embora já não fosse mais jovem, tinha o corpo escultural das cariátides (suporte arquitectónico, originário da Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma estátua feminina) gregas: as pernas torneadas, as cadeiras generosas e os mamilos desafiadores. À medida que esfregava o lenço, Zelda livrava-se das marcas que o passar do dia deixara e removia os restos das efusões alheias. Parecia querer tirar da sua pele não apenas as marcas da dura jornada, mas também as outras, aquelas que não podem ser removidas com água de rosas, as indeléveis, as que se tornam carne mais além da carne.
Aquela lavagem íntima lhe devolvia um pouco da calma que havia perdido desde que a noite caíra com seu véu de bruma escura. Enxaguou o lenço e pensou ter ouvido uma suave crepitação em algum canto. Virou a cabeça para os lados, mas não viu nada fora de lugar. Talvez, tranquilizou-se, tivesse sido o subtil eco da água batendo na porcelana. Voltou a mergulhar o pano e, então, viu, na superfície curva da bacia, o reflexo de uma figura atravessando as cortinas. Ficou imóvel. Não se atreveu a olhar para trás. Havia alguém dentro do quarto. Somente então Zelda compreendeu que ela armara a sua própria armadilha. Estava trancada. Não tinha tempo nem distância suficiente para puxar o ferrolho da porta ou o trinco da janela: estava ao alcance das mãos do estranho. À medida que imaginava uma forma de fugir do claustro, via, no reflexo da porcelana, aquela figura surgir de detrás das cortinas com o braço levantado. Sabia o que iria acontecer. Relutantemente, esperava por aquilo. Era a eleita. Como se fosse feito da mesma substância escura, fria e silenciosa da névoa, aquele vulto estivera observando-a o tempo todo. Zelda deixou o lenço cair no recipiente e tentou recompor-se. Já era tarde. Sentiu que o intruso a pegava por trás, cercando-a com um braço, ao mesmo tempo que, com a outra mão, tapava-lhe a boca para que não pudesse gritar. Enquanto tentava  libertar-se, a mulher via, pelo canto do olho, o capuz preto que ocultava a cabeça do seu agressor, que, com a mão levantada, empunhava um escalpelo brilhante e aterrorizante.
Num único movimento rápido e preciso, o agressor enfiou na boca de Zelda o pano com o qual, até há pouco, ela se asseara delicadamente. Com os seus dedos longos e ágeis, o intruso empurrou o trapo na garganta até obstruir-lhe a traqueia. A mulher revolvia-se tentando tomar ar, mas o tecido molhado era um obstáculo intransponível. A figura encapuzada limitava-se então a prender os braços de Zelda para a impedir de arrancar o pano com as mãos e assegurar-se, assim, de que ela não podia respirar nem emitir som algum. Era apenas questão de esperar que a asfixia chegasse ao fim». In Federico Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-692-7.



Cortesia de EBertrandB/JDACT