Cortesia de wikipedia e jdact
«As seis torres da basílica de St. Martin cravavam as suas
agulhas afiladas na névoa nocturna, desapareciam na bruma e voltavam a aparecer
por cima do tecto etéreo que cobria a cidade de Mainz. Um românico e outro
bizantino, ambos os absides da catedral se impunham sobre as outras cúpulas da
cidade. Mais além, as águas do Reno deixavam à mostra as ruínas da velha ponte
de Trajano, que, assim como o esqueleto de um monstro encalhado, jazia entra as
duas margens do rio. Os tectos de ardósia enegrecida do castelo e os cinquenta
arcos do antigo aqueduto romano coroavam o orgulhoso cume da colina da Zitadelle.
A poucas ruas da basílica erguia-se o pequeno Mosteiro das adoradoras da
Sagrada Canastra. A rigor, aquele austero edifício de três andares que se
alçava na Korbstrasse, perto do Marktplatz, não era exactamente um mosteiro.
Pouca gente sabia que, atrás da sóbria fachada, se ocultava o bordel mais
extravagante e luxurioso do Império, o que, certamente, significava muita
coisa. O nome do bordel era resultado da conjunção do nome da rua em que estava
situado e da devota dedicação com que as prostitutas da casa se encarregavam de
dar prazer aos privilegiados clientes.
Durante o dia, naquele beco
pavimentado, eram abertas as persianas das lojas dos fabricantes de canastras, cujos
principais clientes eram os barraqueiros da praça do mercado. Mas, quando a
noite caía e os cesteiros fechavam as suas portas, a rua voltava a se animar
com a farra das tavernas e das canções vulgares das prostitutas, que,
inclinadas nas janelas, exibiam os seus decotes generosos aos passantes.
Diferentemente dos bordéis comuns, pintados de cores vivas e apinhados de
mulheres desdentadas, hediondas e assanhadas, o mosteiro passava virtualmente
despercebido. As meretrizes da casa eram donas de um recato sensual e de uma lasciva religiosidade que despertavam
tentações semelhantes às que suscitavam as jovens virgens que habitavam os
conventos. Quantos homens nutriam o desejo secreto de participar de uma orgia
com as monjas de uma irmandade? Talvez a realização daqueles lúbricos anseios
fosse o segredo do sucesso da singular casa de prostitutas.
No entanto, desde que uma série de
factos macabros irrompeu no Mosteiro da Sagrada Canastra, o habitual clima festivo
dera lugar a um silêncio compacto, feito com a argamassa do terror. Quando o
sol se punha, uma espera angustiante apoderava-se das mulheres, como se uma
nova tragédia fosse se precipitar. Naquela noite de 1455, o medo estava tão
denso quanto a névoa que abraçava a cidade. Os bordéis vizinhos e as tavernas
já haviam fechado as portas. A bruma parecia uma ave de mau agouro sobrevoando
os telhados. No mosteiro restava apenas um punhado de clientes. As mulheres
suplicavam a Deus para não serem escolhidas pelos visitantes. A única coisa que
queriam era trancar-se nos seus aposentos, se entregar ao sono e esperar que,
nas janelas, surgisse um novo amanhecer.
Zelda, uma das prostitutas mais requisitadas do
bordel, estava ali havia bastante tempo e podia escolher os seus clientes e
decidir quando e como ofereceria os seus serviços. Assim, fazendo uso de suas
bem-conquistadas prerrogativas, deu a noite por encerrada, correu o ferrolho na
porta de seu claustro e trocou as cobertas da cama. Antes de se preparar para
dormir, foi à janela: a rua estava vazia, e a névoa quase não permitia ver os
prédios da calçada oposta. Fechou as persianas e passou o grande trinco que
travava as janelas. Sentada na beira da cama, tirou a roupa como se quisesse desembaraçar-se
não somente do espartilho que lhe apertava o ventre e as costelas, mas de
qualquer vestígio da jornada que acabara de terminar. Humedeceu
um lenço
de algodão numa bacia com água de rosas e depois friccionou-o pelo corpo com
movimentos lentos e repetitivos. Como se se tratasse de um ritual religioso
íntimo, de uma espécie de unção autoimposta, Zelda passava o tecido empapado na
pele com a solenidade de uma sacerdotisa. Embora já não fosse mais jovem, tinha
o corpo escultural das cariátides (suporte arquitectónico, originário da
Grécia antiga, que se apresentava quase sempre com a forma de uma estátua
feminina) gregas: as pernas torneadas, as cadeiras generosas e os mamilos desafiadores.
À medida que esfregava o lenço, Zelda livrava-se das marcas que o passar do dia
deixara e removia os restos das efusões alheias. Parecia querer tirar da sua
pele não apenas as marcas da dura jornada, mas também as outras, aquelas que
não podem ser removidas com água de rosas, as indeléveis, as que se tornam
carne mais além da carne.
Aquela lavagem íntima lhe devolvia
um pouco da calma que havia perdido desde que a noite caíra com seu véu de
bruma escura. Enxaguou o lenço e pensou ter ouvido uma suave crepitação em
algum canto. Virou a cabeça para os lados, mas não viu nada fora de lugar.
Talvez, tranquilizou-se, tivesse sido o subtil eco da água batendo na
porcelana. Voltou a mergulhar o pano e, então, viu, na superfície curva da
bacia, o reflexo de uma figura atravessando as cortinas. Ficou imóvel. Não se
atreveu a olhar para trás. Havia alguém dentro do quarto. Somente então Zelda
compreendeu que ela armara a sua própria armadilha. Estava trancada. Não tinha
tempo nem distância suficiente para puxar o ferrolho da porta ou o trinco da
janela: estava ao alcance das mãos do estranho. À medida que imaginava uma
forma de fugir do claustro, via, no reflexo da porcelana, aquela figura surgir de
detrás das cortinas com o braço levantado. Sabia o que iria acontecer.
Relutantemente, esperava por aquilo. Era a eleita. Como se fosse feito da mesma
substância escura, fria e silenciosa da névoa, aquele vulto estivera
observando-a o tempo todo. Zelda deixou o lenço cair no recipiente e tentou
recompor-se. Já era tarde. Sentiu que o intruso a pegava por trás, cercando-a
com um braço, ao mesmo tempo que, com a outra mão, tapava-lhe a boca para que
não pudesse gritar. Enquanto tentava libertar-se, a mulher via, pelo canto do olho,
o capuz preto que ocultava a cabeça do seu agressor, que, com a mão levantada,
empunhava um escalpelo brilhante e aterrorizante.
Num único movimento rápido e preciso, o
agressor enfiou na boca de Zelda o pano com o qual, até há pouco, ela se
asseara delicadamente. Com os seus dedos longos e ágeis, o intruso empurrou o
trapo na garganta até obstruir-lhe a traqueia. A mulher revolvia-se tentando
tomar ar, mas o tecido molhado era um obstáculo intransponível. A figura
encapuzada limitava-se então a prender os braços de Zelda para a impedir de
arrancar o pano com as mãos e assegurar-se, assim, de que ela não podia
respirar nem emitir som algum. Era apenas questão de esperar que a asfixia
chegasse ao fim». In Federico
Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN
978-852-861-692-7.
Cortesia de EBertrandB/JDACT