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«(…) Os dois fidalgos esporearam com mais força os
ginetes, e breve alcançaram o infante. Senhor, senhor; aonde ides sem vossos
leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente? Vou pedir ao legado do papa que se
amerceie de mim... A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que
encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das
opas e cabelos tonsurados. Oh!..., disse
o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera
aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do
fojo sobre a preia descuidada. Memento
mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam!, rezou o
cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou
os olhos e conheceu Afonso Henriques.
Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar
por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante:
felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do
golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas
a pancada deu em vão, aliás o crânio do pobre clérico teria ido fazer mais de
quadro redemoinhos nos ares. Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o
ungido de Deus, gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
Príncipe, disse o velho, chorando, não me faças mal;
que estou à tua mercê! Os dois mancebos também choravam. Afonso Henriques
deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos. Estás à minha
mercê?, disse ele por fim. Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste.
Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do
apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra
portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste
pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem
letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos
ombros. Apraz-te este contrato?
Sim, sim!, respondeu o legado com voz sumida. Juras? Juro.
Mancebos, acompanhai-me. Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do
legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sòzinho seguiu o caminho
da terra de Santa Maria. Daí a quatro meses,don Çoleima dizia missa pontifical
na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente.
Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em
boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que
começa: In exitu Israel de AEgypto.
Conta-se, todavia, que o
papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim,
tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia: se tu, santo padre, viras
sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te
cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a
cova para ter enterrar, não somente deras as letras, mas também o papado e a
cadeira apostolical.
Nota: A lenda precedente é tirada das crónicas de Acenheiro, rol de mentiras e
disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais
judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz
por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente
na crónica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de
quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram
da parte do académico Francisco S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das
circunstâncias que se deram no facto, aliás verdadeiro, da prisão de dona
Teresa, das tentativas oposicionistas
do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua
fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes;
mas também é certo que ela se originou de alguma acto de violência praticado
nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que
estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o
inglês Rogério Hoveden, narra um facto, acontecido em Portugal, que, pela
analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A
narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera certo ruído na
Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de
Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O
que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século
duodécimo por um escritor que Ruy Pina e Acenheiro não leram (porque foi
publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria
de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no
cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página
640 da edição de Hoveden, por Savile: No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a
Espanha, depôs muitos prelados (abbates), ou por culpas deles ou por ímpeto
próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu
que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando
não cortar-lhe-ia um pé». In Alexandre Herculano. O Bispo Negro (1130)
e Arras por Foro de Espanha, 1851, Livraria Bertrand, Editorial Verbo, Biblioteca
Básica Verbo, 1971.
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