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«Nenhum ser humano esquece o dia em que o
pai morreu.
Dizem que é o momento em que nos tornamos
adultos e o futuro nos é confiado como a chave de uma mansão de que somos enfim
herdeiros. Fingimos que assumimos a vida como senhores do nosso destino, mas a
orfandade nada nos oferece a não ser a solidão dos que se descobrem entregues à
sua sorte. Vivi essa tragédia pessoal numa jornada estranha, uma daquelas
tardes em que tudo parece suceder ao mesmo tem o, como se Deus jogasse com a
nossa desgraça tirando-nos com uma mão o que nos dá com a outra. A vida tem,
aliás, destas coisas. Tropeçamos nos anos como se estivéssemos anestesiados,
não passamos de sonâmbulos a vaguear por um sonho cujos contornos mal
discernimos, perdidos num labirinto tecido pelos mistérios que assombram os
caminhos abertos diante de nós. De repente, como por encanto, ou talvez graças
a um desconcertante passe de ilusionismo, os acontecimentos aceleram e tudo se
precipita. Foi o que se passou naquele dia em que entrei no hotel, um
estabelecimento de luxo instalado num palacete perdido nos confins ocidentais
da Europa. Franqueei o átrio como um animal acossado, ansioso e deprimido,
vergado pelo futuro que intuía incerto. A viagem para Lisboa havia sido
cansativa e quando por fim me deixei cair no sofá, depois de falar com o médico
e de ir ao primeiro andar espreitar o meu pai moribundo, fiquei com a impressão
de que já não seria capaz de me levantar, tão macias achei as almofadas e tão
fatigado me sentia. Olhei em volta e respirei o ambiente sereno do hotel. O
grande salão estava finamente decorado, como sempre, mas o que mais me
encantou, admito, foi o tapete fofo no qual os meus pés se afundavam com
infinito deleite.
Enquanto saboreava o whisky com gelo que
fui buscar ao bar para me forçar a descontrair, deixei a mente vagabundear
pelos acontecimentos das últimas vinte e quatro horas. Tudo começara quando me
chegou o telegrama com as notícias do colapso que o meu pai tinha sofrido em
Lisboa. Apesar de estar plenamente consciente de que, com aquela idade, qualquer
situação do género poderia ocorrer a todo o momento, foi como se alguém me
tivesse despertado com uma bofetada. Uma coisa é pensarmos em abstracto na
possibilidade de isto acontecer, outra é algo assim suceder de facto.
Descobrimos nesse instante que nunca estamos realmente preparados.
O que se passou a seguir à chegada da
notícia transformara-se já numa amálgama confusa de pedaços de imagens que
flutuavam caoticamente na minha memória, como folhas secas que o vento do
Outono atirava em sucessivos remoinhos pelo ar. Lembro-me vagamente de ir a
Piccadilly comprar à pressa um bilhete da BOAC, depois a corrida desenfreada no
meu Morgan até ao aeródromo de Croydon, o interminável voo de seis horas sobre
o Atlântico, a aterragem aos solavancos do De Havilland na pista de Lisboa, as
cores das casas que a luz límpida da cidade tornava alegremente garridas, os
rostos apreensivos que me acolheram no Aviz, a placidez vertida pela face
impassível do meu pai no momento em que o vi estendido na cama. Estava a morrer
e parecia dormitar.
Uma mão amiga apertou-me o ombro,
trazendo-me de volta ao salão do hotel. Alors, mon cheri?, perguntou-me a voz
feminina num tom maternal. T'es bien? Virei a cabeça e reconheci o vulto
alquebrado de madame Duprés. Tinha o olhar cansado de quem não dormia havia
alguns dias e dava a impressão de que envelhecera consideravelmente desde que
com ela me cruzara pela última vez, uns três anos antes. Seria da fadiga ou do
choque? A verdade é que a senhora contava mais de oitenta anos, pelo que a
única verdadeira surpresa deveria ser a energia que a animou até tão avançada
idade. Qualquer que fosse a sua fonte, todavia, a vitalidade manifestamente
apagara-se e dela apenas sobrava um clarão difuso, como o hálito do sol no
langor moribundo do crepúsculo.
Ainda não estou em mim, confessei. Alguma
novidade? A velha francesa abanou a cabeça, os olhos a pestanejarem com uma
tristeza prenhe de resignação. Infelizmente não. Madame Duprés acomodou-se numa
chaise longue ao meu lado, os gestos suaves e melancólicos, o corpo
aterradoramente frágil. Parecia um espectro prestes a quebrar-se. Ele alguma
vez recuperou a consciência? De início sim. O doutor disse-me que se trata de
um tipo raro de coma, como se a consciência fosse sucessivamente ligada e
desligada. Mas os momentos em que está desperto são cada vez mais raros, curtos
e espaçados. O olhar dela pousou em mim e pareceu acender-se por momentos, como
a chama mortiça de uma vela que desperta ao sabor de uma aragem súbita. Por
isso, se ele acordar outra vez, aproveita.
Aproveita cada segundo, frui cada palavra,
guarda cada olhar. Poderá não haver outra oportunidade, entendeste? Assenti com
a cabeça, perfeitamente consciente de que, se voltasse a falar com o meu pai,
seria decerto para lhe dizer adeus. O médico português já me tinha aliás dado
conta da gravidade da situação, sublinhando que a questão se encontrava para
além dos conhecimentos da medicina. Se nutria ainda algumas ilusões quanto ao
verdadeiro estado em que ele se encontrava, perdi-as por completo nessa conversa.
Nos últimos tempos, perguntei de repente, ele falou de mim?
Madame Duprés abanou a cabeça. Como sabes,
o teu pai não era muito expansivo, murmurou de olhos submissos. Mas não tenhas
dúvidas de que a vossa zanga o deixou muito abatido. Nunca mais foi o mesmo. O
era que ela utilizou para se referir a meu pai soou-me amargamente a requiem
antecipado; dava a impressão de que já tinha desistido dele e se resignara ao
inevitável. A pessoa mais afectada, talvez por ter vivido de perto toda a
situação, era de facto madame Duprés. Apesar de ser eu o filho, dei comigo a
tentar consolá-la e a fazer-lhe ver que a vida é uma viagem com ponto de
partida e de chegada. O meu pai estava no fim do caminho, tínhamos de nos
preparar e aceitar o inevitável desenlace. Ela chorou ali ao lado de mim, em
pleno salão do Aviz, os pés afundados naquele tapete fofo, as mãos a taparem o
rosto molhado de lágrimas. Não me envergonho de dizer que chorei também». In José
Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN
978-989-616-549-9.
Cortesia de
EGradiva/JDACT