segunda-feira, 15 de maio de 2017

A Princesa Determinada. Catarina de Aragão. Philippa Gregory. «Tenho de ver! Tenho de ver!, exclamava. Madre, estais a magoar-me! Silêncio, filha…»

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«(…) Chegara a altura da audição da sua mãe àqueles que pretendiam apresentar pedidos e aos amigos, e subitamente ali estava ele, nos seus melhores trajos, de barba penteada, os olhos a dançar, e toda a história contada: como se haviam vestido com roupas árabes, de modo a passarem por habitantes da cidade no meio da escuridão, entrado sub-repticiamente pela porta das traseiras, corrido até à mesquita, como se haviam ajoelhado e sussurrado uma Ave-Maria e fixado com um punhal a oração, no chão da mesquita, e depois, ao serem surpreendidos por guardas, haviam lutado para escapar, cara a cara, investindo e defendendo-se, as lâminas reluzindo à luz da lua; recuado pela rua estreita, saído pela porta que haviam forçado alguns momentos antes, e escapado para a noite, antes de ser dado o alarme geral. Sem um arranhão, sem perder nenhum homem. Um triunfo para eles e uma bofetada no rosto de Granada.
Era uma grande partida pregada aos Mouros, era bastante engraçado gravar uma oração cristã em pleno coração do seu lugar sagrado. O gesto mais maravilhoso para os insultar. A rainha estava encantada, assim como o rei, a princesa e as irmãs olhavam para o seu guerreiro, Hernán Pérez del Pulgar, como se fosse um herói dos romances, um cavaleiro da época de Artur de Camelot. Catarina batia as palmas deliciada com a história, e pedia-lhe que a contasse e recontasse, vezes sem conta. Mas no seu íntimo, lá bem no fundo, recordava o arrepio que sentira ao pensar que ele não voltaria.
A seguir, aguardaram a resposta dos Mouros. Era seguro que viria. Sabiam que o inimigo encararia a aventura como o desafio que era, iria haver resposta. Não tardou muito. A rainha e os filhos visitavam Zubia, uma aldeia perto de Granada, para que Sua Majestade pudesse ver, por si mesma, as paredes inexpugnáveis do forte. Haviam cavalgado com uma guarda ligeira e o comandante estava lívido de terror quando correu na sua direcção, na pequena praça da aldeia, e gritou que os portões do forte vermelho se haviam aberto, e os Mouros saíam disparados, o exército completo, armados para atacar. Não houve tempo para voltar ao acampamento, a rainha e as três princesas nunca conseguiriam cavalgar mais depressa do que os cavaleiros mouros, que montavam garanhões árabes, não havia nenhum lugar para se esconderem, nem sequer para pararem.
Numa corrida desesperada, a rainha Isabel subiu para o terraço da casa mais próxima, puxando a princesinha pela mão, pelas escadas que se desfaziam, com as irmãs a correrem atras. Tenho de ver! Tenho de ver!, exclamava. Madre, estais a magoar-me! Silêncio, filha. Temos de ver o que pretendem. Vêm buscar-nos?, choramingava a criança, com a vozinha abafada pela sua própria mão rechonchuda. Podem vir. Tenho de ver. Era um grupo de atacantes, não a cavalaria completa. Eram liderados pelo defensor, um gigante, escuro como mogno, de sorriso reluzente sob o elmo, montado num enorme cavalo negro, como se fosse a Noite, cavalgando para os surpreender. O cavalo rosnava como um cão para o guarda de vigia, com os dentes de fora.
Madre, quem é aquele homem?, perguntava num sussurro a Princesa de Gales, observando do ponto protegido no terraço da casa. É o mouro que se chama Yarfe, e temo que tenha vindo buscar o teu amigo, Hernán. O cavalo dele é tão assustador, parece que quer morder. Cortou-lhe os lábios para fazer com que rosne para nós. Mas não nos assustamos com estas coisas. Não somos crianças assustadiças. Não devíamos fugir?, perguntou a criança assustada. A mãe, observando o desfile dos mouros, nem sequer ouvia os murmúrios da filha. Não ides deixá-lo magoar Hernán, pois não. Madre?, choramingava a criança.
Hernán lançou o desafio. Yarfe está a responder. Teremos de lutar, disse, calmamente. Yarfe é um cavaleiro, um homem de honra. Não pode ignorar o desafio. Como pode ser um homem de honra, se é um herege? Um mouro? São homens muito honrados. Catarina, apesar de não serem crentes. E Yarfe é um herói para eles. Que ides fazer, mãe? Como vamos salvar-nos? Este homem é grande como um gigante. Vou rezar, afirmou Isabel. E o meu defensor, Garallosco Vega, vai responder a Yarfe, por Hernán. Tão calmamente como se estivesse na sua capela em Córdova, Isabel ajoelhou-se no terraço da pequena casa e indicou por gestos às filhas que fizessem o mesmo. Contrariada, a irmã mais velha de Catarina, Joana, pôs-se de joelhos, as princesas Isabel e Maria, as suas duas outras irmãs, imitaram-na. Catarina viu, espreitando por entre as mãos cerradas, enquanto se ajoelhava em oração, que Maria tremia de medo e que Isabel, no seu vestido de viúva, estava pálida de terror.
Pai-nosso que estais no Céu, rezamos pela nossa segurança, pela da nossa causa e pela do nosso exército, a rainha Isabel levantou o olhar para o céu azul brilhante, rezamos pela vitória do Nosso Defensor, Garallosco Vega, neste seu momento de provação. Amém, disseram as raparigas prontamente, seguindo a direcção do olhar da mãe para onde as fileiras da guarda espanhola se formavam, atentas e silenciosas. Se Deus o proteger..., começou Catarina. Silêncio, pediu a mãe gentilmente. Deixa-o fazer o seu trabalho, deixa Deus fazer o Seu e deixa-me fazer o meu. Fechou os olhos em oração. Catarina voltou-se para a irmã mais velha, puxando-lhe a manga». In Philippa Gregory, Catarina de Aragão, A Princesa Determinada, Livraria Civilização Editora, 2006, ISBN 978-972-262-455-8.

Cortesia CivilizaçãoE/JDACT