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Manescalia.
Terra Santa. 3 de Julho, anno Domini 1187
«(…) São Patrício era um grande
safado. Leofric maldisse o dia em que decidira tomar conta daquele potro. Mas fê-lo
entre duas blasfémias sussurradas a meio-tom. Certamente, assemelhava-se um pouco
ao escudeiro de um cavaleiro templário em posição de quatro patas, como um cão,
com o pó a queimar-lhe a garganta e a terra a impedi-lo de abrir as pálpebras, mas
São Patrício reparara nele desde o dia em que, para o ferrar, lhe espetara
por engano aquele prego na cartilagem acima do casco. Tinha a certeza de que antecipava
o gozo daquele momento há muito. Percebia-o pelos relinchos de satisfação que
ouvia, cada vez mais afastados, enquanto o animal fugia a trote. Vai-te embora.
Vai para casa ruminar aveia. É o que sabes fazer melhor!, gritou-lhe, enquanto
o animal se afastava. És apenas uma pileca!
Algures à sua volta, o capacete parara
de rolar. Quando voltou a tê-lo entre as mãos, selou a descoberta com outra blasfémia
picaresca, certo de que daquela vez a salvação da sua alma também não estaria em
perigo. O segredo era precisamente aquele. Explicara-lho o padre que o
acompanhara desde o dia do baptismo até ao momento em que envergara o primeiro elmo
de combate. Se quiseres tornar-te um bom cavaleiro, tens de ter a alma pura, mas,
e o padre Sean também o reconhecia, nestes tempos é difícil manter as promessas.
Sobretudo se o interlocutor é o Altíssimo. Mas se deres ao teu cavalo o nome de
um santo, de um mártir ou de um apóstolo, nos momentos de confronto nunca te arriscarás
a oferecer a alma a Satanás. Um magro consolo, tendo em conta tudo o que
acontecera num segundo, e o seu senhor, que o precedia com o primeiro conroi
da expedição, prosseguira sem se aperceber de nada. Agora era preciso dar tudo por
tudo para recuperar o terreno perdido, nem que fosse preciso desestribar outro escudeiro.
Tinha de chegar ao acampamento com os outros cavaleiros para que todos pudessem
ver Leofric, o pitta, o filho do moleiro, desfilar, orgulhoso, à sombra do estandarte
do Templo. Um estandarte que, seguramente, num dia não muito longínquo, seguraria
com as suas próprias mãos.
Imaginara o momento em que, de madrugada,
deixara para trás as torres de Manescalia. À cabeça do exército cristão, vira nada
mais nada menos que Raimundo de Trípoli com os seus cinco mil soldados de infantaria
e trezentos cavaleiros. Atrás de si, reconhecera as milícias citadinas e a cavalaria
de Guido de Lusignan e de Henrique II de Inglaterra. Seguidos em silêncio por
um grupo diminuto de cavaleiros leprosos da Ordem de São Lázaro. Ao Templo e aos
seus monges cabia a honra de fechar a formação com duzentos sargentos e cento e
cinquenta cavaleiros. Um deles era o seu senhor, e Leofric, na amálgama de carroças,
catapultas e animais de carga, avançava montado no seu jovem corcel como se viajasse
sustido por centenas de braços invisíveis, saboreando antecipadamente o momento
em que enfrentaria a sua primeira e verdadeira batalha, aos ombros de heróis que
na Europa eram considerados os baluartes do cristianismo na Terra Santa. Ele, um
simples escudeiro arrancado à despensa de uma embarcação de carga de um jovem
guerreiro em viagem a caminho da glória, que apenas no dia anterior fora ordenado
cavaleiro. Um acaso? O destino? A vontade de Deus? Leofric não fora capaz de
responder. Mas mesmo então, com o rosto empastado em suor e pó, diante de um
pôr do Sol vermelho como a cruz que os cavaleiros traziam ao peito, a única coisa
que desejava era chegar montado, nem que fosse numa mula, ao local definido pelo
destino para a contenda.
Ajoelha-te!
Um cavalo passou-lhe à frente, a trote, lançando-lhe mais pó à cara. O soldado
que o montava lançou-lhe uma olhadela de soslaio. Leofric levantou a cabeça de repente.
Reconheceu de imediato as insígnias dos bispos de Acre e de Lida, rodeados por
uma dezena de cavaleiros armados até aos dentes. Entre os escudos fechados em protecção
dos dois prelados surgiu um elmo em forma de mitra, sobre o qual se destacava em
relevo uma grande cruz de bronze. O bispo de Acre sustinha um longo bastão que
terminava com um estandarte que representava o rosto de Cristo. O sinal de que a
Vera Cruz, o madeiro em que fora crucificado o filho de Deus, viajava com ele. E,
de facto, precisamente atrás do seu cavalo, num grande baldaquim erguido sobre quatro
rodas cheias, carregava, de forma lenta e orgulhosa, uma gigantesca cruz plantada
com uma coroa de polé sobre um pedestal de ferro. A madeira escura destacava-se
dos profundos sulcos produzidos pela luz do Sol e do movimento sobre a superfície
de ouro com que fora banhada. No cruzamento dos braços estava encastoado um relicário
dourado, incrustado com pérolas e pedras preciosas e protegido por uma grade. A
santa relíquia repousava naquele precário guarda-jóias». In Roberto Genovesi, O Templário
Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.
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