cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Eles não lhe podem fazer mal. Determinada a não se deixar
dominar pelo medo, Alice se força a se agachar, tomando cuidado para não
desarrumar mais nada. Corre os olhos pela sepultura. Uma adaga repousa entre os
corpos, o fio cego devido aos anos, assim como alguns fragmentos de tecido. Ao
lado da adaga há uma bolsa de couro fechada por uma tira embutida, grande o
suficiente para conter uma pequena caixa ou um livro. Alice franze o cenho. Tem
certeza de ter visto algo assim antes, mas a lembrança não vem. O objecto
redondo e branco encaixado entre os dedos que parecem garras do esqueleto menor
é tão pequeno que Alice quase não o vê. Sem parar para pensar se é a coisa
certa a fazer-se, tira rapidamente a sua pinça do bolso. Abaixa-se e, com
cuidado, retira o objecto, em seguida ergue-o em direcção à chama, soprando
delicadamente a poeira para ver melhor.
E um pequeno anel de pedra, simples e sem atractivos, com
uma faceta redonda e lisa. O anel também é estranhamente familiar. Alice olha
mais de perto. Há um desenho gravado no interior. No início, ela pensa que é
algum tipo de selo. Então, com um choque, percebe. Levanta os olhos para as
marcas na parede dos fundos da câmara, depois torna a olhar para o anel. Os
desenhos são idênticos. Alice não é religiosa. Não acredita nem no céu nem no
inferno, nem em Deus nem no diabo, nem nas criaturas que dizem assombrar
aquelas montanhas. Mas, pela primeira vez na vida, sente-se dominada pela
sensação de estar na presença de algo sobrenatural, algo que ultrapassa a sua
experiência e a sua compreensão. Pode sentir a maldade esgueirando-se sob a sua
pele, seu couro cabeludo, as solas dos seus pés.
Ela perde a coragem. A caverna parece subitamente fria. O
medo aperta a sua garganta, congelando o ar nos seus pulmões. Alice põe-se de
pé atabalhoadamente. Não deveria estar ali, naquele lugar ancestral. Agora está
desesperada para sair da câmara, para se distanciar das provas de violência e
do cheiro da morte, para estar novamente na luz do sol, segura e brilhante. Mas
é tarde demais. Acima ou atrás de si, não consegue distinguir onde, ela ouve
passos. O som ecoa pelo espaço confinado, ricocheteando nos rochedos e nas
pedras. Vem vindo alguém.
Alice vira-se, alarmada, deixando cair o isqueiro. A
caverna mergulha na escuridão. Ela tenta correr, mas fica desorientada no
escuro e não consegue achar a saída. Tropeça. As suas pernas parecem incapazes
de sustentá-la. Ela cai. O anel é lançado de volta para junto da pilha de
ossos, onde é o seu lugar.
Los
Seres. Sudoeste de França
Alguns quilómetros em linha recta a leste dali, num vilarejo
perdido nos Montes Sabarthès, um homem alto e magro vestido com um casaco claro
está sentado sozinho diante de uma mesa de madeira escura e encerada. O tecto onde
ele está é baixo, e o chão feito de grandes quadrados de cerâmica da cor da
terra vermelha da montanha, que mantêm o aposento fresco apesar do calor lá
fora. A única janela está fechada, tornando o lugar escuro excepto por uma pequenina
luz lançada por uma pequena lamparina a óleo, em cima da mesa. Ao lado da
lamparina há um copo de vidro cheio quase até à borda com um líquido vermelho. Espalhadas
pela mesa há várias folhas de um papel grosso cor de creme, cada uma delas
inteiramente coberta de linhas em tinta preta com uma caligrafia perfeita. O
quarto está silencioso, excepto pelo arranhar e deslizar da caneta e pelo
tilintar das pedras de gelo nas laterais do copo quando ele bebe. Paira no ar
um leve cheiro de álcool e frutas. As batidas do relógio marcam a passagem do
tempo enquanto ele pára, pensa, e torna a escrever. O que deixamos para trás
nesta vida é a lembrança de quem fomos e do que fizemos. Uma marca, não mais do
que isso. Eu aprendi muito. Tornei-me sábio. Mas será que fiz alguma diferença?
Não saberia dizer. Pas a pas, se va luènh». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006,
ISBN 978-972-202-969-8.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT