quinta-feira, 11 de maio de 2017

O Estranho Caso de Sebastião Moncada. João Pedro Marques. «Na manhã seguinte o hóspede acordou cedo, alugou uma mula para ir ao Porto e a senhora ficou confinada ao quarto»


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O mistério da Foz
«(…) Não te inquietes, disse. Aqui já não há qualquer perigo. Ia a acrescentar qualquer coisa, mas logo se calou devido à aproximação do estalajadeiro. Costa inclinou-se de travessa pronta e ouvido à escuta. Infelizmente os hóspedes serviram-se em absoluto silêncio e nada transpirou até ele. Reparou, contudo, que o homem não tinha metade do dedo anelar da mão esquerda. Um acidente, pensou. Está tudo bom, senhor?, atreveu-se a perguntar. Sim, muito bom. Agora deixa-nos, por favor, ordenou o viajante. Sátiro Costa afastou-se depressa mas ainda a tempo de o ouvir dizer com voz baixa e num tom tranquilizador: sossega, Francisca. Ninguém sabe onde estamos e depois de amanhã embarcamos para o Brasil... Podes respirar de alívio.
Aquela frase ficou a ressoar nos ouvidos do estalajadeiro e ainda lá estava, à espera de respostas, quando voltou à mesa com os doces. Mas a conversa mudara e rolava agora por Penafiel e pelos rabos-de--palha de uma tal Felizarda. Nada que lhe iluminasse as dúvidas ou que esclarecesse as curiosidades sobre aquela gente e, por isso, retirou-se, contrariado. Começou a pensar em questões práticas. Seria necessário dar parte ao comissário subalterno da passagem daquele casal de adventícios? Talvez fosse melhor dizer qualquer coisa pois não queria problemas com a Polícia. Ainda assim, só daria parte depois de eles terem partido e quando, provavelmente, já fossem no mar alto, felizes e descansados, a caminho do Brasil.
Na manhã seguinte o hóspede acordou cedo, alugou uma mula para ir ao Porto e a senhora ficou confinada ao quarto, onde tomou o almoço e o jantar. Sátiro passou todo o santo dia numa curiosidade inquieta. Que iria o homem fazer à cidade? E que faria aquela senhora ali fechada em misterioso silêncio? Dormiria? Leria? Jogaria cartas? Sem saber o que pensar lançou-se em mexeriquices, interrogou as criadas e foi mesmo ao ponto de espreitar à fechadura e de escutar à porta do quarto grande, mas sem sucesso. Ainda que o hóspede tivesse regressado do seu passeio a meio da tarde, só voltou a ver a senhora horas depois quando o casal desceu para cear, na mesma mesa que tinha utilizado na noite anterior. Desta vez trocavam poucas palavras, ela continuava tensa, e comiam depressa.
Sátiro observava-os de longe, cada vez mais intrigado. Por momentos virou a sua atenção para Maria, que arrumava, em bicos dos pés, umas loiças no aparador do fundo, e foi ao olhá-la que lhe pareceu ver o vulto de alguém lá fora, a passar por uma das janelas. Foi um relance, apenas, uma afloração tão vaga e fugaz, que ficou na incerteza do que realmente vira. Pensou de imediato no azeiteiro de Vilar que andasse por ali a rondar-lhe a criada e, cerrando os punhos de raiva, saiu num ápice da estalagem preparado para afugentar o metediço, todavia não viu ninguém. Ainda desconfiado contornou a casa, mas ao verificar que não havia vivalma nas imediações, riu-se da sua precipitação. Fora, provavelmente, a ramada de uma árvore que tocara o vidro da janela, impelida pelo vento e iluminada pela lua. Ou então uma ilusão óptica ditada pelo ciúme, que viera remexer a sua imaginação.
Quando voltou para dentro já os dois hóspedes tinham terminado a refeição e retiravam-se para o aposento. Tinham um ar muito calmo, agora, e bocejavam ambos com as mãos em frente da boca, para disfarçar. Maria guiava-lhes o caminho escada acima. Os dois castiçais bem erguidos nas suas mãos punham longas sombras no soalho e Sátiro Costa, que ficara no vestíbulo a apreciar a majestade lenta e sorumbática com que os hóspedes subiam os degraus, suspirou profundamente. Não havia dúvida de que aquele par viera devolver à estalagem a sua antiga dignidade. Que pena tinha que partissem tão cedo!
A luz e as sombras foram-se escoando pelo corredor e desapareceram para voltarem algum tempo depois nos passos elásticos, satisfeitos, quase saltitantes, de Maria. Mandaram-me abrir as portadas, informou ela. Querem ver o mar... O olhar da criada luzia, sugestionado pelo doce idílio que imaginava no quarto grande. Ao passar pelo estalajadeiro deu-lhe a entender que o queria nessa noite. E ele, suspirando de enlevo, anuiu e sorriu-lhe, semicerrando os olhos como um gato bem nutrido e dengoso». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.

Cortesia de PEditora/JDACT