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O
mistério da Foz
«(…)
Não te inquietes, disse. Aqui já não há qualquer perigo. Ia a acrescentar
qualquer coisa, mas logo se calou devido à aproximação do estalajadeiro. Costa
inclinou-se de travessa pronta e ouvido à escuta. Infelizmente os hóspedes
serviram-se em absoluto silêncio e nada transpirou até ele. Reparou, contudo,
que o homem não tinha metade do dedo anelar da mão esquerda. Um acidente, pensou.
Está tudo bom, senhor?, atreveu-se a perguntar. Sim, muito bom. Agora
deixa-nos, por favor, ordenou o viajante. Sátiro Costa afastou-se depressa mas
ainda a tempo de o ouvir dizer com voz baixa e num tom tranquilizador: sossega,
Francisca. Ninguém sabe onde estamos e depois de amanhã embarcamos para o
Brasil... Podes respirar de alívio.
Aquela
frase ficou a ressoar nos ouvidos do estalajadeiro e ainda lá estava, à espera
de respostas, quando voltou à mesa com os doces. Mas a conversa mudara e rolava
agora por Penafiel e pelos rabos-de--palha de uma tal Felizarda. Nada que lhe
iluminasse as dúvidas ou que esclarecesse as curiosidades sobre aquela gente e,
por isso, retirou-se, contrariado. Começou a pensar em questões práticas. Seria
necessário dar parte ao comissário subalterno da passagem daquele casal de
adventícios? Talvez fosse melhor dizer qualquer coisa pois não queria problemas
com a Polícia. Ainda assim, só daria parte depois de eles terem partido e
quando, provavelmente, já fossem no mar alto, felizes e descansados, a caminho
do Brasil.
Na
manhã seguinte o hóspede acordou cedo, alugou uma mula para ir ao Porto e a senhora
ficou confinada ao quarto, onde tomou o almoço e o jantar. Sátiro passou todo o
santo dia numa curiosidade inquieta. Que iria o homem fazer à cidade? E que faria
aquela senhora ali fechada em misterioso silêncio? Dormiria? Leria? Jogaria cartas?
Sem saber o que pensar lançou-se em mexeriquices, interrogou as criadas e foi mesmo
ao ponto de espreitar à fechadura e de escutar à porta do quarto grande, mas
sem sucesso. Ainda que o hóspede tivesse regressado do seu passeio a meio da tarde,
só voltou a ver a senhora horas depois quando o casal desceu para cear, na
mesma mesa que tinha utilizado na noite anterior. Desta vez trocavam poucas
palavras, ela continuava tensa, e comiam depressa.
Sátiro
observava-os de longe, cada vez mais intrigado. Por momentos virou a sua atenção
para Maria, que arrumava, em bicos dos pés, umas loiças no aparador do fundo, e
foi ao olhá-la que lhe pareceu ver o vulto de alguém lá fora, a passar por uma das
janelas. Foi um relance, apenas, uma afloração tão vaga e fugaz, que ficou na incerteza
do que realmente vira. Pensou de imediato no azeiteiro de Vilar que andasse por
ali a rondar-lhe a criada e, cerrando os punhos de raiva, saiu num ápice da estalagem
preparado para afugentar o metediço, todavia não viu ninguém. Ainda desconfiado
contornou a casa, mas ao verificar que não havia vivalma nas imediações, riu-se
da sua precipitação. Fora, provavelmente, a ramada de uma árvore que tocara o vidro
da janela, impelida pelo vento e iluminada pela lua. Ou então uma ilusão óptica
ditada pelo ciúme, que viera remexer a sua imaginação.
Quando
voltou para dentro já os dois hóspedes tinham terminado a refeição e
retiravam-se para o aposento. Tinham um ar muito calmo, agora, e bocejavam
ambos com as mãos em frente da boca, para disfarçar. Maria guiava-lhes o caminho
escada acima. Os dois castiçais bem erguidos nas suas mãos punham longas
sombras no soalho e Sátiro Costa, que ficara no vestíbulo a apreciar a
majestade lenta e sorumbática com que os hóspedes subiam os degraus, suspirou profundamente.
Não havia dúvida de que aquele par viera devolver à estalagem a sua antiga
dignidade. Que pena tinha que partissem tão cedo!
A luz
e as sombras foram-se escoando pelo corredor e desapareceram para voltarem
algum tempo depois nos passos elásticos, satisfeitos, quase saltitantes, de Maria.
Mandaram-me abrir as portadas, informou ela. Querem ver o mar... O olhar da
criada luzia, sugestionado pelo doce idílio que imaginava no quarto grande. Ao passar
pelo estalajadeiro deu-lhe a entender que o queria nessa noite. E ele, suspirando
de enlevo, anuiu e sorriu-lhe, semicerrando os olhos como um gato bem nutrido e
dengoso». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de Sebastião Moncada, Porto
Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia de
PEditora/JDACT