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«(…) Questionei-me se As Fábulas
da Raposa teriam sido um presente de Joaquim para Lúcia. Se calhar, ela tinha
ficado aborrecida e vendera o livro ao senhor David, esquecendo-se de que
escondera a carta do seu pretendente lá dentro. Uma vez que não tinha data, os
dois apaixonados podiam muito bem já ser avós. Embora também pudesse dar-se o
caso de ainda serem solteiros e estarem naquele preciso momento a planear o
próximo encontro secreto no cimo da Torre dos Clérigos, a sessenta metros das
ruas da cidade.
Meti a carta na algibeira dos
calções, inspirei uma golfada de ar bafiento para ganhar coragem e avancei,
resoluto, para o senhor David. Entregando-lhe o livro tão inocentemente quanto
o meu coração acelerado permitia, depositei-lhe na enorme palma da mão todas as
moedas de cobre que trazia naquele momento: quatro moedas de cinco réis. A
julgar pelo seu nariz franzido, a bela maquia de vinte réis não andava sequer
perto do valor do livro. Lançando-lhe um olhar desamparado, como fazia quando
lidava com adultos, implorei-lhe que mo deixasse ir pagando todas as semanas.
Não posso, John, disse ele,
abanando a cabeça. Se eu fizesse negócios a crédito, estaria na miséria. Por
favor, por favor, por favor..., eu pago-lhe o resto num mês, choraminguei, sem
fazer a menor ideia de como iria cumprir aquela promessa, mas sem querer ver as
fábulas tão bem ilustradas fugirem-me. Claro que podia ter-me ido simplesmente
embora com a carta na algibeira, mas não conseguia pensar em tê-la sem o livro.
Isso para mim seria roubo. Sabendo que ele estava prestes a recusar novamente,
recorri a todos os meus dotes teatrais e assumi a expressão de um órfão
indigente. O senhor David soltou uma gargalhada,
visto que já estava à espera disso. No entanto, como recompensa pelo meu
esforço, acedeu ao negócio, dando-me uma palmadinha na cabeça, enquanto dizia,
à laia de aviso: se não fores capaz de cumprir o nosso acordo, fico contigo
como pagamento e depois, não tenhas ilusões, mando a minha mulher cozinhar-te
para o jantar! Como sou quase só ossos e nariz, vou saber a gaivota, saiu-me
como resposta, e esta tirada agradou tanto ao senhor David que voltou a rir-se
e, puxando um banco, aconselhou-me a examinar a minha nova compra enquanto
esperava que a tempestade passasse.
E foi assim que comecei a ler a
primeira das fábulas, particularmente digna de ser recordada O Rato, a Rã e
a Águia, cuja moral é: aquele que persegue o mal, persegue-o até à sua
própria morte. Quando o sol voltou, meia hora mais tarde, agradeci ao
senhor David, calcei as botas e corri para casa. Depois de grandes elogios da minha
mãe por ter tomado tão bem conta do seu tecido, subi dois a dois os degraus da
escada até ao meu quarto, onde eu e a carta podíamos estar sozinhos. Paguei os
meus tesouros um mês depois, tal como havia prometido, com dinheiro ganho a
ajudar o meu pai a limpar o escritório dele e a arrecadação.
Dormi com o livro e a carta
debaixo do colchão durante meses. Os dois objectos tornaram-se-me tão
inseparáveis como os próprios Joaquim e Lúcia. O mais provável era a minha mãe
ter descoberto a carta enquanto arrumava o meu quarto, mas nunca o mencionou.
Anos mais tarde, ofereci-a à minha noiva, juntamente com As Fábulas da
Raposa como prenda de casamento. Quando ela morreu, agarrei-me a estes dois
pertences como se me pudessem salvar de um naufrágio.
Desde o dia em que comprei As
Fábulas da Raposa, tenho estragado a vista com milhares de noites a ler à
lareira ou na cama à 1uz de uma vela. Uma longa familiaridade com a arte de
contar histórias tornou-me consciente de que um conto como o que estou prestes
a narrar deve incluir um homem, ou uma mulher, generoso ou com um coração particularmente
corajoso. E, no entanto, sinto que me falta tudo para esse papel. Além disso,
não confio nos meus talentos para fazer um relato exacto dos acontecimentos que
me levaram de Portugal à América. Por isso, sinto que a forma mais adequada e honesta
de começar é com um rapaz de doze anos chamado Daniel, que tive a sorte de
conhecer por acaso há cerca de vinte e quatro anos. Foi ele que pôs em
movimento as ondas que mais tarde me fariam atravessar o oceano Atlântico. Se
mereço o papel central nesta história, é, em parte, graças ao exemplo corajoso
que ele me deu». In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto
Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.
Cortesia de
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