terça-feira, 23 de maio de 2017

Meia-noite ou O Princípio do Mundo. Richard Zimler. «Dormi com o livro e a carta debaixo do colchão durante meses. Os dois objectos tornaram-se-me tão inseparáveis»

jdact

«(…) Questionei-me se As Fábulas da Raposa teriam sido um presente de Joaquim para Lúcia. Se calhar, ela tinha ficado aborrecida e vendera o livro ao senhor David, esquecendo-se de que escondera a carta do seu pretendente lá dentro. Uma vez que não tinha data, os dois apaixonados podiam muito bem já ser avós. Embora também pudesse dar-se o caso de ainda serem solteiros e estarem naquele preciso momento a planear o próximo encontro secreto no cimo da Torre dos Clérigos, a sessenta metros das ruas da cidade.
Meti a carta na algibeira dos calções, inspirei uma golfada de ar bafiento para ganhar coragem e avancei, resoluto, para o senhor David. Entregando-lhe o livro tão inocentemente quanto o meu coração acelerado permitia, depositei-lhe na enorme palma da mão todas as moedas de cobre que trazia naquele momento: quatro moedas de cinco réis. A julgar pelo seu nariz franzido, a bela maquia de vinte réis não andava sequer perto do valor do livro. Lançando-lhe um olhar desamparado, como fazia quando lidava com adultos, implorei-lhe que mo deixasse ir pagando todas as semanas.
Não posso, John, disse ele, abanando a cabeça. Se eu fizesse negócios a crédito, estaria na miséria. Por favor, por favor, por favor..., eu pago-lhe o resto num mês, choraminguei, sem fazer a menor ideia de como iria cumprir aquela promessa, mas sem querer ver as fábulas tão bem ilustradas fugirem-me. Claro que podia ter-me ido simplesmente embora com a carta na algibeira, mas não conseguia pensar em tê-la sem o livro. Isso para mim seria roubo. Sabendo que ele estava prestes a recusar novamente, recorri a todos os meus dotes teatrais e assumi a expressão de um órfão indigente. O senhor David soltou uma gargalhada, visto que já estava à espera disso. No entanto, como recompensa pelo meu esforço, acedeu ao negócio, dando-me uma palmadinha na cabeça, enquanto dizia, à laia de aviso: se não fores capaz de cumprir o nosso acordo, fico contigo como pagamento e depois, não tenhas ilusões, mando a minha mulher cozinhar-te para o jantar! Como sou quase só ossos e nariz, vou saber a gaivota, saiu-me como resposta, e esta tirada agradou tanto ao senhor David que voltou a rir-se e, puxando um banco, aconselhou-me a examinar a minha nova compra enquanto esperava que a tempestade passasse.
E foi assim que comecei a ler a primeira das fábulas, particularmente digna de ser recordada O Rato, a Rã e a Águia, cuja moral é: aquele que persegue o mal, persegue-o até à sua própria morte. Quando o sol voltou, meia hora mais tarde, agradeci ao senhor David, calcei as botas e corri para casa. Depois de grandes elogios da minha mãe por ter tomado tão bem conta do seu tecido, subi dois a dois os degraus da escada até ao meu quarto, onde eu e a carta podíamos estar sozinhos. Paguei os meus tesouros um mês depois, tal como havia prometido, com dinheiro ganho a ajudar o meu pai a limpar o escritório dele e a arrecadação.
Dormi com o livro e a carta debaixo do colchão durante meses. Os dois objectos tornaram-se-me tão inseparáveis como os próprios Joaquim e Lúcia. O mais provável era a minha mãe ter descoberto a carta enquanto arrumava o meu quarto, mas nunca o mencionou. Anos mais tarde, ofereci-a à minha noiva, juntamente com As Fábulas da Raposa como prenda de casamento. Quando ela morreu, agarrei-me a estes dois pertences como se me pudessem salvar de um naufrágio.
Desde o dia em que comprei As Fábulas da Raposa, tenho estragado a vista com milhares de noites a ler à lareira ou na cama à 1uz de uma vela. Uma longa familiaridade com a arte de contar histórias tornou-me consciente de que um conto como o que estou prestes a narrar deve incluir um homem, ou uma mulher, generoso ou com um coração particularmente corajoso. E, no entanto, sinto que me falta tudo para esse papel. Além disso, não confio nos meus talentos para fazer um relato exacto dos acontecimentos que me levaram de Portugal à América. Por isso, sinto que a forma mais adequada e honesta de começar é com um rapaz de doze anos chamado Daniel, que tive a sorte de conhecer por acaso há cerca de vinte e quatro anos. Foi ele que pôs em movimento as ondas que mais tarde me fariam atravessar o oceano Atlântico. Se mereço o papel central nesta história, é, em parte, graças ao exemplo corajoso que ele me deu». In Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017, ISBN 978-972-004-727-4.

Cortesia de PEditora/JDACT