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O
mistério da Foz
«(…)
Passava da meia-noite quando Sátiro Costa saiu do quarto de Maria. A estalagem estava
mergulhada num silêncio morno e ele subiu a escada pé ante pé, pisando ao de
leve e muito devagar para evitar os estalidos dos degraus. Chegado ao seu quarto
despiu-se lentamente e deitou-se na cama sem fazer barulho. Quando se cobria
com o lençol ouviu, vindo da outra ponta do corredor o som de uma cama que rangia
e sorriu com malícia. O hóspede maganão andava, como ele, a encantar a sua
sereia. Quando estava quase a adormecer pareceu-lhe ouvir de novo o barulho cadenciado
da cama e disse de si para si que aquele melro sabido não dava descanso à pobre
senhora...
Adormeceu
com um sorriso satisfeito e acordou com as galinhas, às seis da manhã. A mulher
ainda dormia e, como habitualmente, ele deixou-a ficar na modorra quente
daquele amanhecer de Verão. Encheu a bacia com infinito cuidado, um fiozinho a escorrer
do jarro num murmúrio de águas distantes, lavou-se e vestiu-se o mais
silenciosamente que pôde. Quando por volta das seis e um quarto desceu para tomar
o café da manhã e tratar da escrita, coisa que fazia sempre àquela hora, notou
o silêncio que vinha do quarto grande. Os pombinhos estavam cansados, pensou, e
deixavam-se dormir mais um pouco. Esboçou um sorriso cúmplice, compreensivo, e foi
à sua vida. Só se admirou verdadeiramente com o sossego que entorpecia o quarto
do fundo quando, já perto das oito, ouviu gritar ôôôoo e viu chegar, lá
fora, numa nuvem de pó, a carruagem e o cocheiro da antevéspera.
Subiu
as escadas intrigado e bateu com suavidade à porta do quarto dos viajantes.
Depois, como não obtivesse resposta, insistiu com mais intensidade: Senhor... Senhor!
Meu senhor! Está lá em baixo o cocheiro à espera de Vossa Excelência. Que
recado dou ao homem? Mas o quarto permanecia num profundo silêncio. Não se ouvia
um restolhar, um movimento, uma respiração, e o estalajadeiro inquietou-se. Os seus
gestos tornaram-se agitados, precipitados, e as mãos começaram a transpirar. Que
diabo se passava ali? Experimentou abrir a porta, mas estava fechada por dentro.
Alarmou-se.
Os lábios gelaram-se-lhe num beicinho aflito. Correu abaixo à procura de ajuda e
chegando esbaforido ao pé do cocheiro, informou-o do que se passava: não percebo...
Ninguém responde. Estão fechados por dentro. O cocheiro inteiriçou-se, espantado:
homem, aí anda coisa... O barco para o Brasil sai às dez. O melhor é meter a porta
dentro. Mas o estalajadeiro hesitava. Num relance anteviu desgraças, suspeitas,
demandas, complicações, viu a sua ruína. Pensou em tudo e pensou em nada... Seria
do peixe que tinham comido ao jantar? A cozinheira preta temperava-o à moda de África
e ele imaginou um torpor, um tóxico, uma indigestão, qualquer coisa que tivesse
caído mal naquelas barrigas pouco sazonadas às comidas fortes. Meter a porta dentro?
Não,
não..., não podemos fazer isso, advertiu, de mãos bem abertas e braços
esticados à frente do corpo, como que a repelir essa ideia. Nem eu nem vossemecê
queremos trabalhos com a lei. Deus queira que não haja nada mas não podemos arriscar...
Faça-me um favor, vá ao Porto. Ao Porto?, estranhou o outro. Sim, sim... Corra homem.
Traga-me aqui um médico e um polícia.
O
inspector Vilaverde conduziu o cavalo, a passo, pela Rua de Santa Catarina e quando
chegou à casa vinte e oito desmontou, sem pressas. Juntara-se ali uma pequena multidão
atraída pela desgraça e ele ordenou ao cabo de polícia que dispersasse a gente
que rodeava o cadáver. Era um recém-nascido, parecia de tempo e a sua carinha inocente
e engelhada, estava aterradoramente lívida. O inspector pôs-se de cócoras e esteve
alguns segundos a observar o solo, como um camponês que meditasse sobre as duras
incertezas dos seus torrões». In João Pedro Marques, O Estranho Caso de
Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
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