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Cochim
«(…) Como pouco mais possuía além
da roupa que tinha no corpo, precisava de ganhar depressa algum dinheiro para recomeçar
a sua vida. Ninguém lhe emprestaria a maquia necessária à compra de mercadorias
para fazer tratos e, por isso, dificilmente seria bem sucedido no Malabar,
apesar dos numerosos reinos que se estendiam desde o monte Delhi ao cabo Comorim
e cujos nomes já em Portugal o faziam sonhar: Cananor, Calecut, Tanor,
Cranganor, Cochim, Repelim, Chembé (também chamado Reino da Pimenta), Porcá, Coulão
ou Travancor. Em Goa talvez fosse mais fácil embarcar em um qualquer junco ou nau
que andasse às presas em lugares longínquos como Malaca, Ceilão, Samatra ou Molucas,
onde poderiam trocar ou vender o produto dos saques com muito proveito porque, sendo
tomados no corso, esses bens ficavam fora da alçada da Coroa e não pagavam o quinto
a el-rei de Portugal.
Por ora, nada mais podia fazer senão
ouvir as conversas dos navegantes e colher informações sobre as derrotas
comerciais, os lugares, as mercadorias e os mais desvairados sucessos ocorridos
entre os portugueses e as gentes daquelas terras. Em todos os navios que percorriam
os mares do Oriente, havia sempre veteranos de muitas campanhas, dispostos a contarem
façanhas heróicas, a descreverem sítios maravilhosos por eles visitados ou a darem
informações das cidades e fortalezas sob alçada d'el-rei de Portugal, indicando
aquelas onde melhor se poderia fazer fortuna com menor risco e avisando contra as
que eram verdadeiros cemitérios de portugueses, como Moçambique. A Cisne
não fugia à regra, havendo sempre narradores de serviço, quer de noite, quer de
dia, durante os longos períodos de ócio, sobretudo quando a nau pairava em
calmaria. Ele próprio já fizera pasmar os seus companheiros de viagem com o relato
do seu cativeiro pelo formidável Soleimão Dragut, seguido da revolta dos mouros
em Mocaa sobre a venda dos cativos cristãos e, por fim, dos seus infortúnios como
escravo de um renegado.
Enquanto viver, hei-de arrenegar
do maldito grego, que quase me matou com trabalhos, pancadas e fome, concluíra,
ufano da atenção da assistência, que durante o seu relato lhe fizera muitas perguntas
sobre o mouro Dragut e os seus corsários. Nos três meses em que estive em poder
daquele demónio, senti-me tão desesperado que, por oito vezes, me quis matar com
peçonha, mas Nosso Senhor deu-me forças para resistir até o judeu Abraão Muça me
resgatar e levar para Ormuz. Nessa noite, é Bento Castanho, homem já de cãs, discreto
e bem criado, que tem a seu cargo o desenfadamento de um bom número de ouvintes,
entre os quais se acha um mercador de Aveiro, a viver há mais de dez anos com a
sua mulher em Cochim. Fernão junta-se ao grupo, na esperança de ouvir falar dessa
colónia de casados e das oportunidades de fazer fortuna. O homem, porém, conta a
história da fortificação de Diu, o porto de escala antes de Goa onde lançariam ferro.
O sultão Bahadur, do reino de
Cambaia, na península do Guzarate, deu permissão ao capitão Martim Afonso Sousa
e ao governador Nuno Cunha para construírem uma fortaleza em qualquer lugar de Diu
à sua escolha, em troca da ajuda que recebera, e haveria de receber sempre que
dela houvesse mister, contra os seus inimigos, os mogores (povo de raça mongólica,
aparentados com os tártaros, que se estabeleceu no Indostão, reino de Deli, da
palavra persa mughal) do reino de Deli. No dia vinte e um de Dezembro de mil quinhentos
e trinta e cinco, vai fazer três anos, o governador lançou a primeira pedra para
a sua construção, enterrando muitas moedas de ouro debaixo dela, para dar sorte.
Trabalhámos que nem uns desalmados, todos os que vínhamos na armada (escravos, matalotes,
soldados, oficiais e fidalgos), mas acabámos a obra em seis meses». In Deana
Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2012, ISBN 978-972-462-117-3.
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