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«(…) Uma filarmónica sentia-se ao longe.
Corriam. Era a procissão. À frente um marceneiro espadaúdo trazia o pendão,
pomposo na sua capa de seda vermelha. Virgens de branco, rosas na cabeça, tipos
de gaiatos disfarçados em saias, vinham gravemente, acertando o passo. E sobre
as cabeças um andor de pau dourado e pequeno trazia a imagem, cheia de flores
de papel. Carolina com a garibaldi melhor, uma rede de contas nos
cabelos ruivos, fora também à festa. O coveiro embebedava-se em casa do
Pescada, com a barba feita, o seu carão anguloso e miserável, inerte sob as
abas de um chapéu de Braga. Carolina vestira-se logo de manhã, toda brunida,
botas de duraque sem tacões, brincos de vidro prateado, arzinho alegre, o
branco apetite da sua carne anémica, feminil e débil. E fora ao cemitério
espairecer um bocado, com um farnel no lenço, laranjas, duas queijadinhas da
tia Palma.
A senhora
Marcelina, que fora ama do padre Anselmo e agora arranjava criadas e consertava
cadeiras, tinha prometido a Carolina ir lá ter com ela mais a mulata, que saíra
do hospital havia uma semana e lhe estava devendo coisa de quatro moedas. A
Marcelina morava no pátio também, no primeiro andar, tinha arranjos de casa e
barbicas pela cara, sua meia dúzia de lenços, um rico cordão de ouro com
medalha e uma Senhora das Dores com olhos de vidro, mesmo viva, a olhar para uma
pessoa. E falava-se: que havia papéis, uma panela de dinheiro no quintal, ricos
manteletes nas cómodas, que tinham pertencido à irmã do padre Anselmo.
Marcelina era uma pessoa baixa e vagarosa, aspecto redondo e roxo de hemorróida,
feridas na perna emplastada, anéis pelos dedos e o vozeirão de um
quartel-mestre saindo do capote d'alcoviteira. A sua história apoiava o enredo
principal no governo civil, no hospital e na Rua das Atafonas. De resto
encontrara o padre Anselmo capelão da Guia e tomara-lhe amizade. Boa pessoa, o
padre Anselmo, amigo do seu amigo, boas manhãs na cama, de Inverno,
beberricava-lhe um quase-nada, ratão, pregando belas peças; manhã cedo, ela
ainda na cama, e vinha ele da missa, descobria-a zás, uma palmada. E morrera.
Tudo
quanto é bom acaba. A gente fala, fala..., um dia chega. E dava suspiros.
Carolina conhecia-a. Mal luzia o buraco, já a senhora Marcelina corria a
vidraça e vinha, de coifa branca, espanejar o peitoril. Tinha um sorriso
agradável; um dente trôpego, único e esquecido, esverdinhava-lhe na boca
desmobilizara; as barbicas hirsutas recordavam uma gata mansinha que se
corcova, eléctrica, sob as festas do dono. Era-lhe demais a mais muito obrigada...
De rastos que eu ande, dizia, de rastos que eu ande, não lhe pago as obrigações
que lhe devo. Quando estivera doente, com tosse e muita febre, ninguém dizia
que ela escapava, a senhora Marcelina vinha dar-lhe caldos e fazer meia junto
do seu leito de proletária. Havia dois anos. Mas não se davam muito; a Marcelina
era mais das outras em frente, falava com elas de janela para janela, grossos
risos e pesadas graças. E ratona, então, como nunca se vira. O que sabia de
frades, e do poeta Bocage!... Era arrebentar de riso, senhores. Além disso
andava sempre ocupada na vida, uma azáfama, xale traçado e sapato d'ourelo, a
massa dos seios papuda e molemente batida por mais de meio século, arrotos
estrondosos...
Saíam de
casa dela pessoas lúgubres, de uma vez a polícia fora ali. Enfim, falavam-se
coisas, ela sabia de facadas, e Carolina ouvia dizer isto, arranja pequenas a
velhos. E no fundo da sua alma branca e susceptível experimentara horror. Na
tarde anterior a filha do coveiro recolhera com ares de dia, a Marcelina estava
à janela; falaram-se, como estava, como não estava, o pai como ia e que ela ia
vivendo com o seu padecimento de entranha, amargos de boca, uma canseira, uma
canseira; mesmo mortinha de todo! Tinha posto bismas de confortativo que era
muito bom, andava agora tomando poses caras com a fortuna, mas o fastio era
grande, aflições por dentro... O pior eram as noites, contava todas as horas. E
depois as pulgas. Ai!, dizia, quem tem mazela, tudo lhe dá nela. Que é feito,
que é feito? Não havia olhos que a lograssem. De resto amava as criaturas
sérias como Carolina; nunca fora de tricas, louvado Deus. E arrotava. Tinha
almoçado uma açordinha, com o seu ovo; tudo lhe fazia mal. É caruncho, é
caruncho, comentava. E convidara Carolina a entrar, descansar um pouco, tinha
rosas no quintal, uma franga preta que já punha ovos, manto novo na Senhora das
Dores, minha rica mãe do céu!
Carolina
subiu, beijocaram-se, ricas filhas para um lado, abraço para outro. Carolina
sentia-se contente, uma quietação plena, chocada pela sinceridade da outra. A
senhora Marcelina olhava para ela de face. E largou daí a nada este dito: há de ser um peixão! E piscava o
olho pardo com ares de entendedora. Andaram vendo o quintal; Marcelina
fazia-lhe um ramilhete de rosas. Dali a nada veio a mulata, encostada às paredes, um rolo enorme de
postiços e fundas olheiras, olhos de carneiro mal morto, um cheiro a cigarro e
a cânfora. Mas foi-se logo encostar. Com o tempo húmido, tinha dores do diabo
nos ossos. Desejaria morrer já, raio de vida!
Carolina dizia-lhe palavras
comovidas;
que aquilo não havia de ser nada, em o tempo limpar já a coisa era outra, que
tivesse paciência, coitadinha que tivesse paciência». In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras
Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN
978-972-370-963-6.
Cortesia de LLivros/JDACT